| Foto: Foto: Priscila Forone / Arte: Ricardo Humberto

Daqui uma semana, Ga­­briela Nicola, 23 anos, vai subir ao palco da Sociedade 13 de Maio, no Alto do São Francisco, para entregar a faixa de Miss Curitiba Trans a sua sucessora. Minha santa Hello Kity! Tem poucos dias para pensar no cabelo e na maquiagem. Precisa subir na balança. E ainda não fez o principal – aviar o vestido da despedida. Procura algo alegre, que lhe valorize o talhe de colegial. Talvez se vista de azul. Há de esborrifar J’Adore, da Dior.

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Essa moça sempre sonhou participar de um concurso de beleza. Quando criança, não perdia um capítulo da novela mexicana A usurpadora, estrelada pela ex-miss Venezuela Gabriela Spanic. Tempos depois, foi dela que emprestou o nome e se rebatizou. Só lhe faltava a faixa e a coroa. Chegou a duvidar que viria.

Aos 15 anos, ocasião em que muitas meninas se tornam uma promessa de Isabeli Fontana, Ga­­briela tinha o rosto cheio de espinhas e uma pá de problemas: desconfiava que nenhum garoto ia gostar dela do jeito que era. Na es­­cola, pudera, andava meio sem graça. No trabalho, que falta de sorte.

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Pelas suas contas, até hoje foram mais ou menos dez tentativas de registro em carteira. Esta­­giou em lojas de departamentos e lanchonetes. No primeiro mês de experiência era um fuá, não tinha para ninguém. Os gerentes queriam contratá-la. As colegas de serviço lhe faziam confidências. Os fregueses diziam que só aceitavam ser atendidos por ela.

Mas na hora de assinar a papelada, nuvens negras: mal entregava os documentos e se via chamada de lado, para ouvir a mesma ladainha. "Olhe, não é preconceito, não, mas o nosso jurídico..." De tanto levar pancada, decidiu ser autônoma. Hoje faz performances em casas noturnas ao som de Shakira, Lady Gaga, Madonna e Britney Spears. Fatura R$ 300 por apresentação e paga suas contas.

Foi em meio a essas turbulências que em 2008 virou miss. Ga­­nhou de prêmio um netbook, abra­­ços emocionados da mãe, Jane, e um reinado com prazo de validade maior do que o das outras misses do planeta. Daria um dedo para con­­tar tudo à outra Gabriela, a Spa­­nic. Ano passado, o Trans­­grupo Marcela Prado não realizou o concurso, mantendo a eleita no posto por dois anos. Tor­­nou-se Miss Curitiba Trans 2008, modelo 2009. A organizadora Carla Ama­­ral não se arrepende do investimento. Banana para os gerentes de loja.

A moça representou bem a cidade em eventos fora do estado. Ficou oito meses no Rio de Janeiro, onde chegou a ser entrevistada por Monique Evans. Diante da curitibana, quase soltou um sonoro "men-ti-ra". As reações populares são parecidas. Eu mesmo conferi o espanto de uma senhora ao encontrar a vizinha coroada. Só faltou chamá-la de Adalgisa Co­­lombo da Rua Ermelino de Leão.

A quem interessar possa, Ga­­briela gasta R$ 80 por semana com os tratos. As roupas de gala são alugadas. Não lê O pequeno príncipe: versículos bíblicos adornam as portas da quitinete. É tocante vê-la rezar o salmo 91 no silêncio do quarto lilás: "Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à som­­bra do Onipotente descansará".

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Sempre digo que as histórias mais tristes que já escutei foram para uma reportagem com travestis e transexuais, numa viagem de trem a Paranaguá. Enquanto passava pelo Véu de Noiva e pela Gar­­ganta do Diabo, ouvi memórias sobre professores que mandavam engrossar a voz, sobre tomates atirados, sobre pais e mães que de­­ram de nunca mais falar, de nunca mais ver.

Mas a Gabi do Bairro Alto acha que a vida melhorou. Foi com a mãe que saiu para comprar as primeiras roupas de guria. Em casa recebeu orientação sobre como se defender dos cafajestes. Tem emprego. E mesmo quando fala do educador que revelou na sala de aula haver um menino-menina na turma, o faz sem mágoa. "É difícil para todo mundo, né." Só as misses são felizes.

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