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 | Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Faz uns bons 25 anos, vi um padre, grande amigo, no fundo da sacristia, de mãos dadas com um casal. Rezavam. Soube depois que se tratava de marido e mulher de segunda união. Ressentiam por não poder mais comungar nem confessar – como orienta a Igreja Católica – e tinham dúvida se teriam passaporte confiscado para o Reino dos Céus. Admirei a presença de espírito do sacerdote, hoje missionário sem fronteiras, em andanças por esse mundo de meu Deus.

Lembrei-me do episódio, meses atrás, ao ver um banner na fachada da Paróquia de Nossa Senhora das Mercês, ali na Avenida Manoel Ribas. A faixa convidava para um encontro de gente separada, mas desejosa de voltar ao rebanho. Seriam bem-vindos. A quem interessar possa, por trás do anúncio está o capuchinho Pedro Cesário Palma, 53 anos, um entusiasta com “pastoral da segunda união” – algo inimaginável em tempos idos, quando sacerdotes consolavam os divorciados às escuras.

Natural de Tomazina, no Norte Pioneiro, frei Pedro descobriu a vocação aos 15 anos, pouco tempo depois de a Geada Negra arrasar a lavoura de café de sua família. O episódio foi seu Irmão Sol, irmã Lua. Abraçou a missão franciscana, indo para onde lhe mandava o voto de obediência. Lecionou Teologia e Filosofia, morou em uma penca de municípios, até ser enviado para uma cidade que não lhe cabia nas mãos – “Curitiba, a fria”. Segredinho de alcova: muitos religiosos têm ojeriza a qualquer coisa que se aproxime de uma metrópole. No meio da selva de pedra, amargam um banzo danado dos sertões, onde se sentem amados de fato.

Os encontros – o das Mercês não é o único – fazem um bem danado aos casais de segunda união

Bom – frei Pedro é desses sujeitos que parecem ter só duas expressões: a sorridente e a feliz pra caramba. Traz o Brasil do interior impresso nos gestos. O impacto da “cidade grande”, admite, bateu na canela. O endereço onde está a paróquia que administra tem 13 mil habitantes, algo parecido à maioria dos locais onde viveu. Mas a diferença de escala é galáctica, inclusive no PIB. Só pela Avenida Manoel Ribas passam até 17,2 mil automóveis/dia, de acordo com dados da Setran – o que dá um cansaço danado nos frades. Precisam deixar a caldeirinha e o aspersório a postos: a cada expediente, uma média de 150 motoristas estacionam para pedir uma bênção. Dá quase mil por semana.

Outros mil vêm às quintas-feiras, para uma das pastorais mais inventivas da redondeza – o “Entre ajuda”. São celebrações de 40 minutos, de manhã à noite, acompanhadas por psicólogos, parapsicólogos e os frades. Nada mais ecumênico, urbano, moderno. Some-se que a comunidade de Pedro Cesário é das mais procuradas para pedir as exéquias. Diante de um falecido, a imagem de Céu que vem à cabeça é o belo templo edificado por João de Mio, na década de 1920. Compreensível.

Por essas, a Mercês está na categoria que os pastoralistas chamam de “paróquia de Centro”. São assim chamadas as circunscrições em que os participantes estão de passagem, vindos de tudo que é lado, não raro com pressa. Os vínculos tendem a ser menores. O anonimato, maior. Em áreas assim, é mais difícil o pessoal se abraçar no fim da missa. Quebrar tal círculo de assepsia é um desafio para um ramo que subentende mãos dadas e corações ao alto.

Não é difícil deduzir que os espaços religiosos mais urbanizados sejam um bom refúgio para os católicos descasados. É uma gente que cultiva o silêncio, discrição e que ainda não ousa dizer seu nome. Na hora da comunhão, em vez de irem para a fila, sentam-se. Nesse senta e levanta, muitos desistem, tornando-se católicos em domicílio e a seu modo. Frei Pedro acertou na mosca ao adotar a tal pastoral.

Os primeiros encontros foram há quatro anos, 40 casais de cada vez. Tem fila de espera. Depois do primeiro fim de semana de formação, as reuniões passam a ser quinzenais. Esclarecidas as dúvidas teológicas e canônicas, uns tantos se animam a procurar o Tribunal Eclesiástico, para pedir nulidade do primeiro enlace, muitas vezes com êxito. Mas não é regra nem exigência.

Os encontros – o das Mercês não é o único – fazem um bem danado aos casais de segunda união. O perfil dos egressos é típico – jovens adultos e adultos na maioria, cresceram no catolicismo. Ao se divorciarem, passaram por duas dores: a da separação e a do sentimento de não pertencer mais ao grupo religioso com o qual se identificam. “As histórias de fim de enlace são terríveis”, conta Clarice Silva, que, com o marido Paulo, de primeira união, coordena o projeto junto à arquidiocese, atendendo algo como 200 casais por ano. Bastante.

Segundo consta, a pastoral de segunda união soma quase duas décadas. Mas é discretíssima, de modo a evitar constrangimentos aos que nela se arrebanham. Nunca ouviremos um convite no fim da missa. Mas é bom saber que os novos cônjuges estão lá – são, afinal, mais de 16% dos casados do país. Pelas contas de frei Pedro, os que vieram aos encontros estão integrados a pelo menos metade das pastorais dentre as 37 desenvolvidas nas Mercês. Misericórdia na prática.

  • Frei Pedro Cesário Palma no coro da Igreja Nossa Senhora das Mercês, atrás do altar principal. Todas as manhãs, às 7 horas, comunidade dos frades capuchinhos reza as laudes - em parte cantada. Ofício é aberto aos fieis.
  • Detalhe de frei Pedro Cesário. Plantada numa das áreas mais urbanizadas da cidade, paróquia tem 37 pastorais, inclusive uma voltada para a segurança alimentar. Pastoral dos casais em segunda união começou ali faz 4 anos e atendeu cerca de 160 casais.
  • Frei Pedro Cesário na nave da igreja, construída pelo arquiteto João de Mio, na década de 1920, com pinturas de Paulo Kohn.
  • Frei Pedro na Avenida Manoel Ribas - rua tem tráfico diário de 17 mil automóveis. Apenas para bênção de carros, todos os dias, 150 motoristas recorrem aos serviços dos frades.
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