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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

A primeira palavra que meu sobrinho Pedro falou foi "chuva". O pe­­­queno ainda empanturrava as fraldas e se entupia de funchicória, mas feito um curumim da floresta já clamava pelas águas. Tupã, que toró.

Há quem duvide dessa história e faça pouco. Mas tenho testemunhas. O piazinho puxava o "chuuuu" das profundezas do esôfago tratado a papinhas; de­­­­pois soltava o "vaaaa" com a displicência de uma mangueira desgovernada. Só vendo.

Ah, ninguém lhe ensinou – aprendeu sozinho, de tanto ver os adultos soltar impropérios contra o tempo nublado com chuvas esparsas. Preferíamos, é claro, que ele batesse palminhas no compasso de "Brasileirinho". Ou que soletrasse "inconstitucionalissimamente", faturando algum no "Se vira nos 30". Mas nada. Teimava em repetir aquela nênia triste, dando início à sina da qual nenhum curitibano se safa – a de ser mais íntimo da chuva do que dos amigos e parentes.

Ouvi certa vez que Curitiba tem um dos maiores índices pluviométricos do planeta, equiparando-se à bela e molhada São Petersburgo. Essa afirmação não passa pelo crivo do Simepar, é claro. O que se pode afirmar com alguma ciência é que, desafiando as leis da natureza, as duas cidades foram erguidas sobre o banhado. Deu no que deu, com alguma vantagem para a terra dos czares.

Milhares cruzam o globo e enfrentam os ventos uivantes do Golfo da Finlândia só para tirar uma foto em cima da Pante­­­leimonovsky ou da Alexander Nevsky – duas das 342 pontes daqueles alagados longínquos. Sem comentários, uma vez que nossos rios entraram pelo cano, livrando autoridades de usar a cabeça, forçando o povão a se virar com troncos e rezas. Cho­­remos.

Vá lá – a chuva está para o curitibano como o sol e a praia para o carioca. Decoramos desde cedo a equação meteorológica que funciona como um dogma: "Se chove, esfria". Para fazer uma média da chuvarada que nos persegue, basta calcular quantos meses os cobertores jazem aos pés das camas. Onze?

Não é de todo mal. Dias sujeitos à garoinha de molhar bobo trazem de barato a quietude, sem a qual seríamos rendidos à febre tropical de Ivete Sangalo. "Chu-va, Chuva...". No mais, depois de pendurar os sapatos atrás da geladeira é bom ouvir Jorge Ben Jor cantando "Chove Chuva". Ou Zeca Baleiro a bordo dos versos de e.e. cummings em "Nalgum lugar". Do not perturbe.

Aliás, deve ser raro alguém da cidade que não tenha passado pelo menos uma grande data abraçado a um guarda-chuva. Diz-se até que casar em "dia feio" dá sorte. Sugiro a quem quer que se encaixe nesse caso que se apresente ao IBGE. Se provada a relação entre chuva e matrimônio, poderemos nos tornar a capital mundial dos finais felizes, aquecendo o mercado das grinaldas impermeáveis e das gôndolas.

Um aparte. Qualquer poesia ou piada sobre a chuva soa imoral em meio a esses dilúvios de agora. São águas amargas. Bom seria se à maneira do Museu da Pessoa – que recolhe depoimentos de gente comum e as imortaliza na rede de computadores – alguém se dedicasse a gravar as lembranças da tempestade.

Seria o Memorial da Chuva. Seus arquivos cruzariam dados do Holocausto com os dos deslizamentos. Ficcionistas encontrariam ali pasto para a literatura. Planejadores urbanos aprenderiam a colocar a tempestade nos planos. Fotos e músicas e filmes nos seduziriam com Gene Kelly e "Singing’ in the rain". E nos acordariam com verdades sobre a Região Serrana.

Houvesse o memorial, eu arquivaria lá a fala da aluna a quem pedi uma foto da infância para um exercício. Não podia. Os aguaceiros de Blumenau levaram-lhe o álbum de família e o sorriso. Também gravaria no site o ocorrido com a moradora de uma favela da CIC: calejada pelas enchentes, mantém seus pertences em saquinhos de plástico. Graças a essa tática, ainda tem Certidão de Nascimento e uma retrato do falecido.

Como ninguém é de ferro, mandaria para o site relato de uma corrida que fiz na chuva em 1978. Ritual de passagem. Lembra o seu? E arriscaria uma teoria – a de que Pedro, o guri do começo do texto, queria era falar com a chuva. Pudera.

Essa coluna é dedicada à jornalista Bruna Walter, que anda em busca das memórias da chuva para uma reportagem.

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