• Carregando...
 | Foto: Daniel Derevecki / Arte: Benett
| Foto: Foto: Daniel Derevecki / Arte: Benett

A alemã Sabine Sil­­berspitz não tinha ainda 20 anos quando se deparou com Rita Hayworth no papel de Gilda, nalgum cinema da Curitiba de 1946. Seria o Avenida? Calcula ter visto o filme de Charles Vidor – "sei lá, uma centena de vezes". Nunca mais foi a mesma.

Esguia como Rita, Sabine adotou os cabelos frisados e os tomara-que-caia da personagem mais famosa do pós-Guerra. Como tinha aprendido a fumar ainda menina, bastou-lhe arrumar uma piteira para se tornar, com grande vantagem no placar municipal, a mulher inesquecível da Avenida Luiz Xavier. Estava, enfim, pronta para a vida.

Os pais de Sabine – Isaac e Helena Silberspitz – eram donos da Casa das Rendas, loja que funcionou de 1936 a 1967 no térreo do Edifício Gar­­cez. Difícil imaginar que naqueles 30 anos algum bom enxoval tenha sido feito na cidade sem passar pelo balcão da lojinha. Arrisco dizer que os fregueses guardariam cada sianinha num re­­licário se soubessem o diabo sofrido pelo casal pa­­ra chegar até ali.

Os Silberspitz eram naturais de Dortmund, no Oeste da Alemanha. Lá, num dia qualquer de 1933, Isaac se viu levado, ainda de pijamas, pela polícia. Deram-lhe 24 horas para deixar o país. Seu crime: ser judeu. No navio, ouviu da mulher "onde ficava o Brasil?" Disse "não sei... É o único lugar do mundo que aceitou nos receber".

Em meados da década de 1930, Curitiba tinha 140 mil habitantes e, a sua maneira, fazia parte do mundo. Era nela que vivia Salomão Guelmann, uma espécie de Oscar Schindler que oferecia casa, comida e trabalho para seus compatriotas judeus, foragidos das fumaças do nazismo. Foi quem ensinou a Isaac as manhas de mascate – de tanto bater palmas logo se tornou o dono da Casa das Rendas, o "pai de Sabine".

Sabine aprendeu a falar português aos 7 anos, no Instituto de Educação do Paraná. Aos 12, esticou o primeiro metro de elástico para vender. Aos 14, conheceu Léo Wahrhaftig em uma matinê na Sociedade Israelita. Aos 18, estudou Contabilidade. Aos 20 e poucos se casou. Aos 40, deu adeus aos armarinhos e abriu a butique Noi, uma loja de grifes que merecia entrar para os anais da resistência semita.

Explico. Não se sabe como seria a vida de Sabine se uns vizinhos não tivessem denunciado os Silberspitz à SS. Ela e o irmão Manfred cresceram marcados pelo exílio, pela dúvida sobre onde ficava o Brasil, pelos gritos de Helena, ao saber por carta que seus seis irmãos tinham sido mortos por Hitler. "Seu cabelo ficou todo branco de repente. Achei que ela nunca mais ia sorrir", diz.

Mas eis que em 1967 Isaac morre, Gilda se tornara um filme antigo e as boas moças curitibanas deixavam de fazer enxovais finos. O planeta se coçava por guerra outra vez, mas também andava doido por um desbunde. Sabine entendeu que hora era aquela e decidiu responder fazendo da Noi – "nós" em italiano – a filha tresloucada da Casa das Rendas. Deu certo.

Helena achava graça daqueles bandos de moças experimentando roupas psicodélicas num vestuário coletivo. Sabine, que nunca quis ser contadora, aproveitou a deixa para desenvolver um método próprio de fechar o caixa. Fazia maços de dinheiro e pesava numa balança. Tudo no olho. "Uma farra. A gente queria se divertir."

A festa durou três décadas, sete lojas, lucros e prejuízos a perder de vista. Até que se foram a mãe, o marido e a Noi. Restou Sa­­bine, 82 anos, uma mulher bela, de cabelos de fogo e sem cigarros. De uns tempos para cá, sei lá, deu de lembrar como nunca da tragédia de Dortmund. Quantas lágrimas. "Se não houve o Holocausto, que tragam meus parentes de volta..." Mas como também é feita de rendas, nossa Rita Hayworth ri de uma bobagem qualquer. Com a mão na Estrela de Davi, presa ao peito, avisa que adora esse país – um país que ela sabe onde fica. "Café?"

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]