| Foto: Foto: Antônio More/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A pilha de jornais sobre a mesa não deixa mentir – ali mora uma leitora. Ela se chama Sara Furquim, tem 96 anos e não perde um capítulo... da Lava Jato. Inclusive pela internet, se preciso for. Não se fiúza em computadores, mas dia desses deixou recado à sobrinha Ezilda Furquim Bezerra, sua fiel escudeira: que mandasse um e-mail ao Ricardo Boechat, dando opinião sobre uma notícia qualquer. A parenta obedeceu; afinal, trata-se de Sara, “a professora”, a quem qualquer um tem ganas de se desdobrar em favores. Diante desse nome, joelhos se dobram, sorrisos se abrem e chapéus são retirados da cabeça em toda a pequena Rio Branco do Sul, na Região Metropolitana de Curitiba.

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Sara é um patrimônio municipal: professora pioneira, primeira vereadora local, fundadora do primeiro jardim de infância e da primeira biblioteca pública, isso para ser breve. São muitos os feitos dessa desbravadora intrépida, dona de admirável senso prático. Quando na Câmara, criou o ponto de ônibus coberto. Quem pega o busão sabe o que isso significa. Por essas e outras, não há desfile, quermesse ou efeméride rio-branquense para o qual não seja convidada, com honras de chefe de Estado. Vai à maioria, sem reclamar de dor nas juntas. Está tudo bem, avisa aos que lhe oferecem o braço – “só não funcionam o ouvido direito e o joelho esquerdo. De resto...” Causa inveja.

Não fazemos a mínima de onde foram parar nossos mestres dos primeiros anos, justo aqueles que nos ensinaram o que de fato importa, ler e escrever

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A prova de que quase um século não lhe pesa é que ainda costuma dar aulas particulares aos que lhe pedem, para não perder a mão, treinada em 40 e cacos anos de magistério. Não cobra tostão. É boa no português, mas não lhe dá preguiça tomar a tabuada – o povo apanha. Fechando o pacote, continua a escrever trovas. Ultrapassa a soma de centena, algumas repetidas de cor. Só na semana passada, escreveu meia dúzia de versos – um deles com loas ao ex-governador Roberto Requião, “por respeitar aqueles que ensinam”. Bombas de gás me ceguem – nada como uma crítica elegante.

Sara Furquim nasceu em 1918 – e se criou na época em que moças ricas aprendiam umas poucas letras e uns tantos bordados. Estava programada para o altar, mas sua mãe, Josephina, a sonhava professora. O próprio nome, Sara, foi escolhido por imaginar que as crianças teriam facilidade de guardá-lo. Assim se deu. Aluna do Instituto de Educação, teve aulas com Erasmo Pilotto, Anette Macedo e Helena Kolody, de quem se tornou chapa. Um exemplar autografado de Tempo, editado em 1970, figura entre os tesouros dos Furquim. Sara é a Helena de Rio Branco.

Os pupilos de Sara Furquim a reverenciam, em desacordo com a teoria conspiratória de que professores habitam o rodapé e o chulé da história. As cartas que recebeu em décadas a perder de vista o comprovam. Uma delas comove em particular. Ao ganhar um prêmio internacional, o cartógrafo José Bittencourt Andrade usou dos Correios para lhe dizer que, de tudo, o mais importante foi ter lido Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, por indicação da professorinha. Ali sua vida começou. Bacana.

Uma das situações mais esquizofrênicas do nosso tempo é que não fazemos a mínima de onde foram parar nossos mestres dos primeiros anos, justo aqueles que nos ensinaram o que de fato importa, ler e escrever. Os ex-alunos de Sara não padecem desse vazio. Sabem onde achá-la – no casarão da Travessa Furquim, 54. Do portãozinho para dentro, não dá para saber que dia é hoje e em que ano estamos. Nem xarope Melagrião dá barato igual. Sara me fez pensar onde andarão as “tias” Diana, Edil e Marina, sem as quais não traçaria essas linhas. E você, de quem lembra?

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O casarão dos Furquim soma 87 anos e 250 metros quadrados. Está plantado num ponto estratégico de Rio Branco do Sul – ao lado da placa de boas-vindas à cidade e atrás do pontilhão da linha de trem, marco industrial da meca do calcário. Impossível não vê-lo – todo em madeira, rodeado de janelas altas como o quê, sótão, varanda e paisagem de pinheiros ao fundo. Por tempos funcionou como hospedaria de viajantes.

Sara e o casarão são um corpo só. Tudo ali lhe diz respeito – o relógio de parede com os ponteiros parados em 2h30. A escada que leva aos quartos no forro, o poço revestido de pedra; o pátio onde um dia funcionou uma escola criada pelo patriarca Octávio Furquim, seu pai. Ponha na conta todos as moradas míticas da literatura e do cinema: a mansão de Tara, de E o vento levou; a Casa dos Espíritos, de Isabel Allende; O casarão (1976), a novela de Lauro Cezar Muniz. Tem a ver: narrativas dormitam naquelas paredes que gemem.

Uma das mais incríveis histórias gravadas ali é a de Maria da Luz Furquim, irmã de Sara. Ela é a moça do retrato sépia que impera na parede. Estava noiva quando os médicos descobriram que sofria de nefrite crônica, doença que esfacela os rins. Tinha um trato com o namorado Edgar Jankowski – iriam se casar quando ele se formasse em Medicina. Ao saber que não haveria cura, o moço reprovava, ano a ano, de modo a poupá-la da verdade. Morreu aos 32 anos. A noiva eterna dá nome a uma escola vizinha, mas é no casarão que seu enredo, digno de romance de sensação dos anos 1910, continua sendo contado.

Sara não se casou. Dispensou o pretendente, que queria levá-la para Paranaguá. Não havia como. Era ela quem vestia a petizada de guarda-pó branco para brilhar nas paradas. Que se abalava 29 quilômetros implorar livros às secretarias de governo. Além do mais, havia o casarão. Os quadros de formatura – sempre com ela homenageada – seguiram lotando as cômodas da sala. É como se os formandos se mudassem para lá, ao fim de cada ano letivo. Um bocado de Rio Branco do Sul mora na travessa, ao lado de Sara – a professora. Bonito.

A Sara Furquim, 96 anos, na casa onde vive desde 1928.
Sara na varanda: população de Rio Branco do Sul a quer presente em qualquer evento - ela não nega sua presença, nem sob o peso da idade.
Visto do casarão dos Furquim, na travessa que leva o nome da família, em Rio Branco do Sul. Na primeira metade do século, pátio abrigou a primeira escola da cidade.
Uma das principais histórias contadas por Sara é a da irmã Maria da Luz, a “noive eterna”.
Vista de Rio Branco do Sul, desde o casarão projeto por Nicolau Rausis. Por décadas, Octávio Furquim, avô de Sara, manteve ali uma hospedaria para viajantes rumo ao Vale da Ribeira ou às grutas da região.
Sara foi a primeira mulher na Câmara Municipal, em gestão iniciada em 1964. Criou bibliotecas e abrigos nos pontos de ônibus.
Parte dos fundos do casarão da família Furquim.
Sara é trovadora desde os 18 anos de idade - quem a incentivou foi o trovador Barreto Coutinho. Em passagem pela cidade, ele leu os versos da normalista e a incentivou.
Políticos de todas as épocas do século 20 “bateram ponto” no casarão dos Furquim.
Sara, a trovadora: cartas de ex-alunos são o testamento de sua longa vida.
Bosque de pinheiros completa a paisagem do casarão.
Sara durante conversa com a Gazeta do Povo.
Na grande sala, relógio marca 2h30. Quadros de formatura nas cômodas mostram que Rio Branco do Sul “mora” um pouco ali.
A sala de leitura da veterana Sara Furquim: “Ezilda, peço que mande uma mensagem para o Boechat.”
Nos arquivos da professorinha, os exercícios de Matemática que aplicava em tempos idos.
O quarto de Sara Furquim: colchas de chenile,
Detalhe do sótão. Número na porta guarda resquício dos tempos de hospedaria dos Furquim.
Vista geral do casarão.
Sara Furquim lê as trovas que produziu na última semana: sobre os que incentivam a educação e sobre a brevidade da vida.
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