| Foto: Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Num dos momentos mais inspirados de um livro eterno – A invenção do cotidiano –, o historiador francês Michel de Certeau sugere que num mundo que se esfarelou, como o nosso, tem sempre alguém catando os pedaços. Que alívio. Nesse exato momento, um homem pinta um móvel de vermelho, uma mulher oferece amizade a um estranho, um jovem cai na estrada, uma cozinheira faz alquimia. Rebelião dos sentidos – todos eles, e pronto. Como que por encanto, a ferida aberta acha uma cura.

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Poesia? Em se tratando da curitibana Cristiana Prante, 28 anos, muitos viram seu momento “certeauniano” como coisa de doida varrida. “Virei florista”, avisou, para espanto geral, a guria formada em Design, pós-graduada em Marketing, ao voltar de um curso de Arte Floral, feito na meca das flores do Brasil: Holambra (SP). A quem interessar possa, está empregada – negócio próprio –, de posse de juízo e necessitada de uma ginástica laboral. “Dá uma trabalheira. Tô com dor nas costas.”

Plantas mexem com as memórias. São alucinógenas

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Seu posto de atuação é um Fusca 1970, verde quartel, categoria “joinha”. Na porta do carro mandou escrever “Florista Viajante”. Depois saiu por aí, para entregar arranjos que faz. São montados com arte e circunstância. Cris tem mão boa para arrumar um vaso, diriam. O nome certo é “assinatura floral”. Se precisa de uma folha diferente – jiboia, costela-de-adão – para ornamentar, não se acanha: bate palmas no portão de alguma casa do sempre verde Pilarzinho, onde mora. Pede o favor e estende o podão – simples assim. Não raro, ganha também um papo sobre como fazer muda de rosas ou relatórios a respeito do temperamento amuado das avencas. Falam das virtudes da terra com minhocas, dos malefícios do vento encanado.

Cristiana descobriu as plantas – e, como Deus no Velho Testamento, viu que era bom. De quebra, entendeu que as pessoas se tornam mais bacanas quando tratam de jardins do que quando assuntam, sei lá, sobre a Dilma, refugiados, ou do medo tolo que sentem dos adolescentes que usam boné para trás. Tempos estranhos, mas apesar de tudo tem quem se entregue à paixão instantânea provocada pela visão do Fusca Verde da Florista Viajante, liberando as melhores endorfinas da felicidade. Selfies no Fuque. Somos todos a Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.

A florista viajante se pergunta como diabos tudo começou. Talvez seja culpa do Projeto Rondon. Foi graças a esse intercâmbio que, décadas atrás, seu pai – um estudante de Medicina – conheceu Núria, nascida na Amazônia, à margem do Rio Purus. Casaram-se. Cristiana, a filha, cresceu vendo a mãe reeditar uma floresta tropical nos quintais de uma fria Curitiba. Pode também ser culpa do bisavô paterno – que participou do paisagismo do Passeio Público. Mas a hipótese mais provável é que seja culpa dos argentinos.

Faz uns anos, a designer se mudou para Buenos Aires – passar uns tempos, o que deveria ser um direito garantido pela ONU. Encantou-se com o costume portenho de comprar flores na rua pelo simples prazer de vê-las frescas na mesa da sala. Perguntou-se por que não no Brasil. Tinha conhecimentos aprendidos com a mãe. Estudou mais um bocado. Depois foi só tirar o Fusca da garagem. Fez-se florista profissional.

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É bom vê-la falar de ruscus, alstroemeria, cúrcumas e sementes de ligustro. Descobrimos que dálias, girassóis e bocas-de-leão têm seus temperamentos, a respeitar. Mais: plantas mexem com as memórias. São alucinógenas. Portugueses se entregam aos fados diante de um espírito-santo. Como no filme Flores partidas – aquele em que Bill Murray sai à caça de suas antigas namoradas –, há quem seja tomado de fossa diante de um botão qualquer. “Não, não, Cristiana, essa flor não me traz boas recordações”, escuta volta e meia de algum freguês sentimental. Lágrimas secadas, põe-se a ouvir fragmentos de um discurso amoroso, desengavetados pela força revolucionária de um cravo, pelo abrir de uma buganvília em penca.

Flores, creiam, fornecem matéria-prima para romances, inspiram chansons e boleros[La vie en rose? Dos Gardenias?], toadas e até sertanejos universitários. Igualmente, fazem rir. “É de verdade?”, perguntam os distraídos diante de um ramalhete obscenamente selvagem e sexy – especialidade do catálogo da moça. “Pena que murcha, né”, dizem os que se recusam às flores de corte. Murcha, sim – é da vida.

Caso o cliente mude de ideia, Cristiana tem um decálogo para manter as flores mais vivazes do que se estivessem nos canteiros. É preciso gastar um cadinho de tempo com aparos nos caules e trocas nas águas turvas. Nesses minutos, o pensamento parece uma coisa à toa. A vida descomprime. Entendemos que parte do que nos incomoda é besteira. O resto é poda. A flor no vaso eu posso pôr, e agora. Às vezes, na louca, algo floresce. Vai ver que era disso que falava o bendito Certeau.

Fusca 1970 usado no transporte das flores
Girassol pronto para ganhar estrada
Planta, Flores e Fusca prontos para Florista Viajante
Ateliê da Florista Viajante
Galochas moderninhas para combinar com as flores
Cristiana Prante - Florista Viajante ao lado do Fusca 1970 e dos arranjos que desenha.
Cristiana Prante - Florista Viajante ao lado do Fusca 1970
Cristiana Prante - Florista Viajante ao lado do Fusca 1970