• Carregando...
 | Foto: Priscila Fogiato/ Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Priscila Fogiato/ Arte: Felipe Lima

Ano passado, os jornais informaram que o Ministério da Cultura estuda reconhecer algumas favelas como patrimônio histórico nacional. Faz sentido. Como é sabido, o Morro da Favela – daí o nome – foi ocupado por soldados egressos da Guerra de Canudos, inaugurando um tipo de habitação que só tende a crescer e se multiplicar.

Acho que a capital paranaense devia se antecipar e identificar as favelas que emolduram seu passado. Os primeiros casebres beira linha de trem e beira rio apareceram por aqui na década de 1940, ganharam lastro nos anos 1950 e começaram a virar assunto nos 1960, quando a turma dos arrabaldes deu de sair dos fundões para passear pela Praça Tiradentes, então coração da cidade.

A Curitiba da "era paralelepípeda" não entendeu muito bem a que vinham os esfarrapados. Ler o que os jornais publicavam a respeito é o que há. "Maloca perturba sossego na Rua Goiás", alardeava uma Gazeta de 1963. A presença dos muito pobres entre nós foi vista como um problema higiênico e moral e, que ironia, um atentado estético à cinzenta e alagada capital daqueles idos.

Um dado chama atenção. As favelas mais citadas na imprensa eram a do Capanema – hoje ex­­­­tinta –, a Vila Pinto, agora Torres; Parolin e o finado Inferninho do Santa Quitéria. Finado? Há controvérsias. Tem quem diga que o Inferninho ainda existe, no mesmo lugar de sempre – nas barrancas do Rio Barigui. "É só seguir a Rua Ulisses Vieira até o fim. O inferninho fica ali", avisam os veteranos. Outros gargalham ao constatar que alguém ainda se lembra daquelas redondezas. "O inferninho não existe", afirmam, com a fúria dos hereges.

Pelo sim, pelo não, desci a Rua Ulisses Vieira. A contar pelo que me disseram, aquela que seria uma das favelas mais antigas de Curitiba – candidata a tombamento pelo Patrimônio Histórico – sobrevive apenas na memória de uns pingados. "A turma do tempo do Inferninho já foi para o céu", anuncia um morador, trôpego anjo com trombetas desafiando os bafômetros.

É fato. A favela do Inferninho foi morta e enterrada em 1982, quando os moradores criaram uma associação e refundaram a comunidade com o nome de Nossa Senhora da Paz. Logo em seguida à ata, o Rio Barigui vazou, causando um dilúvio dos diabos. Sinal divino. Decidiu-se nunca mais pronunciar a palavra que deixava os justos sem jeito. E the end.

A quem interessar possa, o Inferninho nasceu num chão encharcado que obrigava a uma penitência de baldes e pontes de madeira. Não bastasse, estava no limbo. Nem ônibus chegava. Daí ter se tornado terra de ninguém. Duas ou três famílias em guerra apavoravam os mais ou menos 600 moradores, muitos deles nortistas foragidos do campo depois das geadas das décadas de 60 e 70. Lá pelas cinco da tarde, com medo dos vilões, o jeito era botar a filharada do portão para dentro.

Há quem ainda se recorde aos risos dos temidos Lima e dos "Pés-de-Anta" – uma rapaziada dantesca. O fora da lei mais citado, contudo, tinha a alcunha de Wandão, cabra dado a meter a faca em seus desafetos. "Passado, passado", anuncia Walmir Krause, radicado no Inferninho em 1970. Para a velha guarda, a violência dos idos até que era inocente – os bandidos não passavam de valentes ladrões de galinha e bebedores de pinga, "bem diferente de hoje", dizem.

Há 15 dias, dois irmãos foram assassinados ali por motivo fútil. E não faz muito tempo, 15 viaturas desceram a Ulisses para estourar uma boca de fumo. Mas esconjuro para quem julga ser a ressurreição do Inferninho. Hoje, a vila é um misto de tudo: tem de casebres a sobradões, às vezes escondidos atrás de anárquicas bananeiras plantadas nas calçadas. Fim de tarde, vê-se pá de gente pelas esquinas tomando a fresca, em especial na vizinhança do Bar do Colorado. No boteco, mestre Valdevino mantém viva a lembrança do time que os curitibanos amavam. É dos deuses.

Tem até uma matriarca, Maria Umbelina dos Santos, a dona Catarina, 88 anos, negra de olhos azuis. Quando ela chegou, em 1966, já conhecia as profundezas: aos 8 anos fora entregue de presente a uma patroa; aos 12 em casamento a Tito, pai de seus oito filhos. Tirou os arruaceiros de letra e diz ter feito, no braço, daqueles infernos o seu pedacinho de céu. Eu creio.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]