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 | Foto: Nego Miranda – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Nego Miranda – Arte: Felipe Lima

O ano é incerto – talvez 1984. O horário – madrugada de sexta adentro. Quantas pessoas participaram? Conta outra. Mesmo torta, a história é daquelas que acertam na mosca. Pelo menos assim achei ao ouvi-la na voz da jornalista Tali Miranda. Era sobre sua mãe – a psicóloga Sarita Warszawiak (foto) – e o Bar Palácio,reduto com mais de 80 anos de serviços prestados à boemia.

Reproduzo aqui o que disseram as fontes. Sarita e uma amiga, a bioquímica Valderez Ravaglio Jamur, vulgo Duca, exerciam o sagrado direito da beberagem quando o instinto falou mais forte. Precisavam comer. Como com fome ninguém pensa direito, saíram do Bar Retranca, um point de jornalistas na Praça Carlos Gomes, e seguiram braço dado – guiadas, quem sabe, pelo aroma do "Churrasco Paranaense" – até o Bar Palácio, ainda instalado na Rua Barão do Rio Branco.

Até as monjas do Solitude sabiam que o local não servia mulher desacompanhada. O mundo tinha passado pela revolução sexual, pela pílula, pela contracultura – e a cidade, por musas como Didi Caillet, Ângela Vasconcelos, Sabine Wahrhaftig –, mas nada nem ninguém fora valente o bastante para retirar da entrada do bar o lembrete de que "sozinhas", nem pagando.

Por muitas décadas o Palácio – "o último que fecha" – funcionou como o "Triângulo das Bermudas" da noite local. Depois de tragos esparsos em inferninhos de ocasião, a derradeira tinha de ser lá, pelo simples motivo de que "todo mundo ia lá". A regra valia em especial para repórteres policiais, que encontravam no restaurante um justo repouso depois das rondas pelo "mundo cão".

Para as meninas que ganhavam a vida no Centro, o endereço era um sonho de consumo, mas não propriamente para se entregarem à luxúria de uma pratada de "Mineiro com Botas", sobremesa unânime entre santos e pecadores. Daí a proibição, talvez uma das mais longevas desde a Lei de Talião.

O estabelecimento surgiu em 1930. Mas o planeta tinha rodopiado até 1984. Naquele ano, o país enfrentava a ditadura com o movimento Diretas Já, que ganhara força em Curitiba. A cidade gozava da fama de politizada, moderna e notívaga. Amava um poeta chamado Leminski. Tinha um prefeito chamado Maurício Fruet. E mulher sozinha não entra? Hora de rodar a polaca.

Nem Sarita nem Duca fizeram sociologias àquela hora da noite e da sofreguidão estomacal. Mas encarnaram, súbito, uma daquelas feras do sufragismo assim que o garçom se negou a lhes servir. "Putas da cara", como se dizia, atravessaram o salão rumo à delegacia mais próxima. Melhor. Às delegacias.

Duca lembra que numa delas o guardião as atendeu de cueca, basbaque ao ter de sair da cama por causa de duas malucas que queriam comer no Palácio. Aplicou a regra universal do serviço público: disse que não era com ele. Noutro local, o policial de plantão também amarelou, mesmo sendo um negro com altura e peso para garantir a entrada no bar tanto das presas do Ahú quanto das asiladas da Cúria. Tensão.

As duas amigas eram um verdadeiro tratado de paz no Oriente Médio. Sarita é judia. Duca, árabe. Mas entre o "deixa disso" e o "peraí", ficaram com o "peraí". Chamaram o policial às falas, perguntando se ele já tinha sido discriminado por causa da cor. "Sim." Lembraram-lhe da Lei Afonso Arinos. "Claro." Ligaram para um advogado. Deu certo.

Foi o início da lenda sobre a noite em que as mulheres ocuparam o Bar Palácio. Deu até camburão na porta. Avisadas do forrobodó, as jovens que estavam no Bar Retranca se mandaram em peso para a Barão. De quebra, as prostitutas se somaram ao levante e aproveitaram para espiar o Palácio por dentro. Não faziam nada igual desde 1966, quando protestaram contra o fechamento da Boate Marrocos.

Restabelecida a ordem, as mesas foram juntadas, sem distinção. Não se quebrou um copo. "Achei tão bonito", suspira uma. "Garoava pacas", lembra a outra. No sábado, deram entrevista às rádios e aos jornais. No domingo, sossegaram. Passam bem. Como diz Walt Whitman, "o mundo fez sentido até o dia seguinte".

Em tempo. Há um mês, soube que muitas mulheres mais velhas ainda pedem o sanduíche de pernil "na porta" do Bar Mignon, na XV, outro das antigas. Podem entrar, é evidente. Mas não querem ser vistas lá dentro. Vai ver é medo da língua do povo.

Fosse elas, chamava Duca e Sarita para um bis.

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