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 | Foto: Ivonaldo Alexandre – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre – Arte: Felipe Lima

Maria de Fátima Scaramella de Moraes não tinha mais que 4 anos de idade quanto tudo aconteceu. Deu de ter visões sobre vidas passadas. Assustou-se. Súbito, enxergava-se em cenas que pareciam decalcadas de filmes como Ben-Hur – da corrida de bigas aos horrores do leprosário, onde se viu perseguida por uma legião de esfarrapados.

O tempo passou, as visões não. Fátima saiu da pequena Paulo Frontin, no Sul do Paraná, veio para Curitiba, formou-se em Contabilidade, casou-se, teve uma filha. Em cada capítulo de "sua vida atual" seguiu acompanhada das lembranças da época em que foi cigana na cidade de Toledo, na Espanha. Uma jovem rica na Alemanha, de nome Maritza. Uma escrava. Uma belíssima indiana. Borda em detalhes os séculos distantes e as fronteiras onde esteve tão anônima quanto eterna. E as pessoas que conheceu.

Volta e meia cruza com alguma delas por aí e as surpreende com a revelação de quem eram e o que faziam em outras encarnações. Um médico com o qual se tratou soube de primeira mão de suas raízes ibéricas, quando desfrutava de uma mocidade fervorosa, sem as rudezas do consultório. Ele adorou saber. À fisioterapeuta confidenciou que foram mãe e filha um dia. Abraçaram-se com a ternura dos que há muito tempo não se veem.

"Eu identifico pelos olhos", conta a mulher bonita, de 59 anos, sem uma gota de afetação. O sobrenatural lhe é natural. Fátima não faz o tipo sombrio, que carrega o peso de uma pá de existências. É divertida. Confesso que ao ouvi-la, sabendo de suas tantas milhagens acumuladas, fico triste por não crer – adoraria contar que fui ajudante na gráfica de Gutenberg, em 1450, e operário de palco para Sarah Bernhardt, em 1870. Quem sabe, office boy do Marcel Duchamp nos anos 1910, tendo transportado mictórios e rodas de bicicleta, na santa ignorância do que de fato se tratavam.

Entre as tiradas formidáveis de Fátima está a de que os melhores anos do resto de suas vidas foram os de indiana – na época em que a Índia não botava terror no noticiário. Mas o estágio "kármico" no qual aprendeu a cozinhar, de verdade, foi o de escrava, lerê, lerê. Provei de seus doces e atesto em cartório: ela não mente. Tem experiência acumulada em fogueiras e fogões imemoriais. Pensa inclusive em lançar um livro de receitas.

As visões de Fátima, contudo, não renderam sempre uma conversa boa, servida com café e pavê. A guria de família ucraniana cresceu num aguerrido lar católico. Carrega a imagem da Virgem no peito. Vai à missa de braço com o marido, o engenheiro Marco Antônio. As contendas entre o catolicismo e o espiritismo já a levaram a se ajoelhar diante do sacerdote: "Padre, acredito na reencarnação. Será que me tornei um feijão perdido?"

Para domar as tormentas da alma, começou a ler Clarice Lispector e García Márquez. E a escrever. A pena correu solta nos anos em que viveu em Fa­xinal do Céu, quando a Copel transferiu Marco Antônio para lá. Havia silêncio e horas de sobra. Com tantas encarnações, assunto não lhe faltava. Chegou a mandar argumentos para o extinto programa Você Decide e esboçou o roteiro de uma novela de tevê, que sonha assinar a quatro mãos com Miguel Falabella. Não, eles não se conheceram na Paris do século 18. Fátima conviveu em alguma era desconhecida foi com o Stênio Garcia. Gostaria de lhe contar, mas nem sabe como.

Em 2012, nossa viajante esotérica lançou Meus escritos, uma coletânea com relatos sobre sua dezena de biografias. Vendeu cem exemplares. Prepara agora um livro sobre os cachorros que já teve – sua paixão confessa – e redige uma espécie de autoajuda reunindo suas impressões sobre o ser e o estar no mundo. Um dia, acredita, há de entrar de novo no ciclo. Com sorte, há de se lembrar dos tempos em que cuidou de um sobrado no Xaxim, enfrentou congestionamentos da Rua Francisco Derosso e amava os animais. Ela não acha que foi a melhor novela do Livro das Vidas, é verdade, mas pelo menos teve o Miguel Falabella a lhe arrancar risadas e alguns queridos a lhe chamarem de doida demais. Valeu.

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