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Ossy (esquerda) e sua madrasta Liamir | Foto: Antonio More Arte: Felipe Lima
Ossy (esquerda) e sua madrasta Liamir| Foto: Foto: Antonio More Arte: Felipe Lima

De tanto ouvir falar do dia em que nasceu, Ossy Hauer, 80 anos, é capaz de descrever minuto a minuto o parto mais complicado de sua grande família – cada toalha branca, cada rabo de olho. "Fui tirada a ferros", conta, pondo as mãos nas têmporas e rasgando todos aqueles "erres" típicos de quem cresceu falando alemão numa Curitiba empapuçada de wienerwursts.Os efeitos não tardaram. Ossy mostrou dificuldades leves de audição, fala e locomoção, o que na crença da época lhe reservava um lugar no vale dos inválidos. Era de praxe – confundia-se a debilidade dos sentidos com a capacidade de aprendizagem. "Eu me arrastava", diz ela, sobre os anos em que estudou na célebre Escola Dona Branca. Pouco lhe valeu: ainda adolescente, vencida, recolheu-se à "vida em segredo" – aquele ponto qualquer entre a cozinha e o quarto de dormir.

Foi pela fresta das portas que viu as irmãs casarem e terem filhos. Viu também a mãe morrer. Tinha, então, 50 anos e nem imaginava que estava em vias de um segundo parto, dessa vez sem fórceps. Foi em 1981. O pai de Ossy, Arnaldo, conhecido como "o dono da Casa Hauer", famosa loja atrás da Catedral, lhe apresentou uma amiga de salões dançantes. Era Liamir Hauer, a "Lia" como se pôs a chamá-la com voz piano.

Liamir, para quem não conhece, funciona a mil rotações por minuto. É mulher solar, capaz de pôr à mesa suas intimidades com a facilidade com que desfia lembranças de Marrakesh. Mesmo aos 88 anos, entrega-se à cidade com a mesma volúpia com que rodopiou as saias nos "anos dourados", quando chegou a ser primeira-dama e foi retratada diva pelo italiano Gaetano de Gennaro.

Ossy e ela não eram feitas do mesmo barro. Mas se deram como veteranas do Sion num encontro do Velho Madalosso. Lia logo especulou qual era o maior sonho daquela guria madura, apenas oito anos mais nova, mas que parecia ter parado em 1945. O sonho era conhecer a Disneylândia, muita ambição para quem só tinha ido a Caiobá.

Pois Lia – conhecida pelo exagero – a levou ao encontro de Mickey, passando antes pelo Japão. Cruzaram o globo – uma feito uma chaleira fervendo, a outra um Oceano Pacífico. A cada milhagem, mais ficava para trás a infância passada num casarão da Avenida Batel, onde hoje funciona a Pizzaria Scavollo. Ossy chegara à vida adulta, enfim.

Meses depois, ao ouvir de uma tia a frase "você vai ganhar uma madrasta, a Lia", mal lembrou das sombras dos contos de fadas. Teria Liamir sempre por perto. E andaria mais do que notícia ruim: de braço com a madrasta esteve na China, na Espanha, África do Sul, Noruega... Fez cruzeiros. Foi a bailes. Usou maiô.

Arnaldo se foi em 1993. Elas choraram baldes, claro, mas não jogaram os passaportes pela janela do prédio, na Praça Osório. Atualmente, só não viajam mais porque, segundo Liamir, "dá muito trabalho morrer no exterior". São, afinal, duas octogenárias. Mas quem diz.

Começam cedo, indo à academia "malhar". Como Lia tem uma espécie de hiperatividade rara, ainda não catalogada pela ciência, passa o dia no trânsito, nos caixas de banco e nas serestas. Ossy, marcha leve, faz palavras cruzadas, tricô, toucador e dorme com as galinhas. Se tem algo a dizer e Liamir ainda não chegou, deixa a porta do quarto aberta. É a senha. Às vezes quer apenas um abraço e um beijinho. "Eu adoro ela", repete, com a doçura de Tistu. "Ossy é minha melhor herança", devolve Liamir, com autoridade de quem viveu três viuvezes, com devidos inventários e chateações.

Há mês e pouco, Liamir lhe fez um mimo: transformou em livro artesanal alguns diários de viagem escritos pela enteada, esquecidos num armário. Ao revê-los, emocionou-se com a letra graúda de quem, dizia-se, jamais conseguiria escrever uma maltraçada linha. Mandou imprimir fac-símile e presenteia os conhecidos. Chama-se O mundo sob a ótica de Ossy e é um presente, digamos, para a humanidade.

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