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Antes de se decidir pela vida clerical, Dirley Moreira, 40 anos, o padre Moreira, era vendedor de produtos farmacêuticos para animais. Pensava até em cursar Veterinária, mas eis que ouviu a voz do vento e, em alguns anos, se viu longe do balcão e atrás do altar, dizendo missas. Gatos e cachorros ficaram na saudade. Pelo menos até pouco tempo, quando o sacerdote foi empossado vigário da Paróquia São Francisco de Assis – igreja plantada na curva de uma das avenidas mais infernais da cidade, cujo nome é uma homenagem a outro Francisco, o Derosso.

Francisco, o de Assis, não era lá o santo das rezas de Moreira. Mas não seria ele, um pio, a ficar mal com Deus. Deu de fazer sermão sobre o velho Chico, promover trezenas, louvar a irmã natureza. Tomou gosto. Em 4 de outubro do ano passado, em plena festa de São Francisco de Assis, lá estava o ex-vendedor aspergindo água benta na Arca da Noé da vizinhança. Melhor remédio não há.

O povo sabe. Dia desses, uma senhora desconhecida bateu na porta da sacristia trazendo um gato aninhado nos braços e feições de mater dolorosa. Viera abalada, do Cabral até o Xaxim em busca de uma graça que salvasse o bichano adoentado. O religioso não negou preces, nem palavras, e até lembrou alguma passagem da vida do santo, ofício no qual se tornou uma autoridade. "É impressionante como me perguntam se Francisco saiu mesmo de casa sem roupa", diverte-se o embaixador do poverello nas terras infiéis de Curitiba.

Moreira -- tão popular nas rebarbas da Linha Verde quanto Reginaldo Manzotti no Terminal Guadalupe -- tem uma cruzada inteira pela frente. Francisco não é santo milagreiro, como Santo Antônio. E como a coisa vai preta e a turma com pressa, a devoção anda em baixa. Mas nada que brade os céus. O pobrezinho de Assis é hors-concours: cativa a humanidade há nada menos do que oito séculos. É tempo. Pode até não ser o santo mais pop da estação, mas ainda assim seu currículo só encontra concorrência no próprio Redentor.

Fisga até não-católicos. É o caso do mestre em Educação Cláudio Oliver, 46 anos, pastor na Igreja do Caminho, instalada num barracão da Vila Fanny. Nem a tradição protestante nem a erudição de catedrático afastaram Oliver dos encantos do santo católico. Francisco é uma inspiração, diz o homem que mantém uma imagem do "irmãozinho universal" em cima da mesa e o repertório hagiográfico em cima da pinta. Motivos não lhe faltam – no século 13, o jovem bem-nascido de Assis abraçou a pobreza para reconstruir a Igreja, parecido ao que fez Lutero no século 16. Conversa das boas.

Fico pensando o que aconteceria se juntassem Oliver e Moreira num púlpito erguido na Francisco Derosso. Ai de ti, Diretran! Os carros parariam no meio da avenida e teríamos nesse dia o milagre da paralisação dos automóveis. A notícia correria pelos binários até chegar à Zona Norte, gerando romarias em massa pela Rápida do Portão. A turma da Bicicletada desceria em bando do Alto da XV – alguns ciclistas, quiçá, pelados – como Francisco fez ao deixar a casa de seu pai. Corais entoariam com todo o gogó a versão da seita hippie Meninos de Deus para a oração "Senhor, fazei de mim um instrumento de tua paz". Moçoilas curitibanas cortariam suas madeixas chapinhadas e deixariam os cachos ao vento, imitando Clara de Assis.

Pois é, essa versão do Dia de São Francisco está Irmão Sol, Irmã Lua demais para o neo-realismo curitibano. Não à toa, pastor Oliver prefere Francesco, estrelado pelo brutamontes Mickey Rourke, ao musical edulcorado de Franco Zeffirelli. Talvez tenha razão.

Amanhã, 4 de outubro, a realidade há de ser bem menos espetacular. Donos de cães e gatos vão levar suas crias para benzer. Alguém há de plantar uma árvore. E uma mãe vai contar a seu filho uma das mais belas histórias que o mundo já ouviu – lamentando em segredo não tê-lo batizado de Francisco. Tem sido assim nos últimos séculos, amém.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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