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 | Foto: Felipe Rosa | Arte: Felipe Lima
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A Vila das Torres tem 4,2 mil habitantes, divididos em 1.028 domicílios. Estima-se que 30% dos moradores trabalhem com reciclagem do lixo, algo como 1,2 mil pessoas. Não se sabe ao certo quantos carrinhos servem a esses trabalhadores, mas se houver ao menos um por carrinheiro, nesse momento dois desses veículos "manomotores" podem estar trombando numa esquina da Rua Chile com a Manoel Martins. Transtorno pior, só dia de novena no Perpétuo Socorro.

Apesar das evidências, contudo, a tração humana está longe de ser o meio de transporte mais importante da Vila das Torres. Esse posto cabe ao automóvel, onipresente em cada centímetro das 30 ruas da outrora favela. Não há números seguros, mas a contar pelos cálculos da vizinhança, haveria um carro para cada três moradores, algo como 1,4 mil veículos circulantes, ou pelo menos tentando pegar no tranco, sendo mais da metade Monzas, Kombis e Chevettes candidatíssimos a participar do quadro "Lata Velha", no Caldeirão do Huck.

"O povo da vila é enjoado", contra-argumenta o eletrotécnico Marcos Eriberto dos Santos, o Marcão, líder da comunidade, ao defender que a frota que congestiona os 199,4 mil metros quadrados da região não é tão sucateada assim. O carro popular recém-saído de fábrica, de fato, desponta na paisagem, mas não é páreo para as antiguidades que ainda engatam uma primeira marcha graças aos milagres do Luizão, do Toninho e do Dovinho, os três mecânicos da vila.

É comum ver o dono de um carango falando deles como se fossem da família. Padrinho dos filhos. Ou sócios. "Tem quem gaste 40% do que ganha para manter um pau velho desses funcionando", garante o sereno Luiz Fustinoni, o Luizão, 50, com a autoridade de quem começou a fuçar em motores aos 10 anos e aprendeu a dirigir aos 12, numa DKW. Com quatro décadas de graxa, poderia fazer carreira internacional, consertando cadillacs em Cuba. Seus vereditos são uma sentença. Se diz "não tem jeito", melhor abaixar a crista, procurar uma esquina erma e abandonar o carango ao descanso eterno, até que algum cemitério de automóveis o remova.

João Batista Pinto, 51, um dos fregueses do Luizão, não chegou a enterrar nenhum carro nas margens do Rio Belém. Mas quase. Mineiro de Perdões, João chegou à Vila das Torres em 1967 e logo foi recrutado pelo "São Camilo", instituição que organizava os "catadores de monturos", como se dizia. Passou 20 anos recolhendo papel no braço. Era seu meio de transporte. Até que em 1989 trocou o carrinho de papel por uma reluzente Kombi amarela 1973, marca que é sua paixão confessa.

João até hoje só não teve mais Kombis do que esposas. Legítimo "bico doce", casou-se com Leda, Raquel, Claudineia, Noca, Filha e Ivanete. Garante se dar bem com todas. Quanto às Kombis, além da modelo 1973, teve uma 1975, uma 1968 "azul e branca" (raridade, havendo só 84 unidades na capital); tentou um Monza 1985 – R$ 4 mil em prestações –, mas voltou para o amor de sua vida, agora numa versão furgão, ano 1980, branca, já com várias passagens pela oficina do Luizão. Que seja eterno até que a morte ou um feirão de automóveis no Atuba os separe. A conta está em R$ 300. Diagnóstico: rolamento moído.

"Mas tem joinha aqui, ó", alerta Luizão, com a cara enfiada no capô de uma castigada Saveiro 87, que só rezando. Na fila dos consertos da oficina, um Passat com adesivo Powertech no parabrisa; um cabisbaixo fusca sem paralamas; e um heróico Monza preto. Embora desbotado, guarda alguns sinais da beleza de outrora. Ainda tem muito para dar. "É um grande carro", garante o especialista, explicando a alta incidência de antigos Chevrolets de luxo nas periferias.

Pudera. Monzas são tapetes voadores que levam famílias inteiras a pescarias nas Cavas do Iguaçu. Não raro cospem fumaça, fraquejam na subida, piram na quilometragem – essa incógnita –, mas que nada. Alegria, alegria. Se precisar a turma empurra e o mecânico que estiver por perto, leva.

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