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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Aos 12 anos, Noeli Marilse Cunha Ribeiro se sentia bela como uma garotinha dos livros ilustrados. Lembra-se de ter longos cabelos que lhe batiam à cintura, de tocar piano, de estudar no Sagrado Coração de Jesus – "o da Avenida Iguaçu". Vivia a vida em cor-de-rosa. Sonhava ser médica, pudera: a guria das madeixas longas andava cercada de gente estudada. A mãe trabalhava fora e lhe servia de modelo. O pai – delegado da PC – tinha apartes com Ney Braga e Moysés Lupion, parentes distantes, amigos leais.

Mas eis que ainda aos 12 Noeli "teve a inocência roubada", como se dizia. O rapaz que lhe fez mal – menino de uns 15 anos – era agregado numa fazenda da família, lá pelas bandas do Hugo Lange. Com ele se casou sem véu nem grinalda, por força da moral e costumes. Com ele se mudou para os rincões do Atuba, onde teve início a vida de migalhas de "Noeli da Luz", seu nome de casada.

A casa para a qual se mudou em nada lembrava o sobrado de sua meninice. O cabelo foi cortado e vendido para custear dívidas do marido no baralho. Não tardou e pela primeira vez uma mão se levantou sobre ela – levantada ficou. E à miséria, à violência e à solidão daqueles dias se somou um fato digno de figurar nas páginas fantásticas de Gabriel García Márquez.

Noeli teve três gravidezes de trigêmeos, seguidas uma da outra. Mal tinha deixado as bonecas de porcelana e se viu com uma leva para cuidar – debaixo das asas do esposo cruel e de uma sogra sem piedade. Em seguida, vieram mais sete gestações – todas de gêmeos. Aos nove filhos foram se somando outros 14. A última lhe nasceu quando já sufocava os calorões da menopausa, cravando 24 filhos – 12 meninos, 12 meninas. De muitos, Noeli mesma cortou o cordão. Mãe coragem.

A três médicos contei essa história, os três dizem nunca terem visto nada igual, ainda que seja possível. Mas as probabilidades científicas perdem importância diante das verdades e fantasias de Noeli. Ela tem de fato os modos de menina de colégio de freiras. Usa de boas palavras. Capricha nos detalhes. Cita ruas e praças das cidades por onde andou, carregando a grande família ao redor, para espanto de quem a via: "É tudo seu?" – sempre ouviu, fosse em Paranaguá, Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Florianópolis ou Brasília.

No Rio, certa feita, viu-se sem teto em plena Praça XV – com uns 17 dos seus presos à saia. As prostitutas se aninharam a sua volta, pasmas com aquela imagem sacrossanta em plena zona da perdição. A mesma pergunta: "É tudo seu?" Depois feito comadres falaram da vida e deram de jantar aos miúdos, até que ela se foi rumo à Rocinha.

A senhora Da Luz me conta essas e outras – os despejos, as fugas, os ônibus que tomou sem olhar para onde, os trens – "pagos pelo primo Ney". "Achava que tinha de ser. Que era destino. Que eu era nada. Custei a gostar de mim."

Conheci Noeli no Parolin, onde mora há 20 anos. Vive num barracão de reciclagem, ao custo de R$ 98 por semana. Ganha uns trocos como carrinheira, outros de aposentada por invalidez. O marido se foi com outra, que bom.

Tamanha sina se parece a muitas que ouvi – a das filhas desonradas e deserdadas, cujos nomes nunca mais foram citados; a das mulheres submissas; a das matronas de muitos e muitos filhos. Em Noeli, todas essas tramas formam um rio. Tento entender por que as suportou.

Andei a seu lado do Parolin ao Centro. No caminho, me contou que em meio às desgraceiras havia o seu ventre, a gerar tantos e tantas vezes. Esse é o mistério, sobre o qual resta calar. Nos despedimos com amenidades sobre artesanato, os netos – "o centésimo primeiro está a caminho" –, sobre a fila da Cohab, que parto. Aquele abraço. Depois sumiu no Marco Zero da Tiradentes, a grande mãe que nos povoou. Soma 66 anos. Veste uma saia cor-de-rosa. Tem longos cabelos de menina.

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