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 | Foto: Valterci Santos/Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Valterci Santos/Arte: Felipe Lima

Gil Fabrício é um ho­­mem pequenino. Tem 43 anos, usa boné de guri e seu peso é o de uma pluma. Parece um passarinho. A qualquer hora do dia, toca o telefone e ele voa para onde lhe chamarem – um passeio no shopping, um cinema quem sabe, ao pé de uma cama, onde oferece uma prece e a palavra a quem padece. Essa é sua vida. Gil atua como voluntário na Pastoral da Aids e atende aqueles a quem o HIV deixou só somente só, com uma vontade danada de se ir antes da hora.Falamos um pedaço de tempo – pouquíssimo dele, de quem só deixou fotografar as mãos. Economizou nas falas. Mas me forrou de panfletos sobre a pastoral, um projeto criado em 2005, hoje com 160 voluntários, dos 18 aos 80 anos, atendendo 200 pessoas, com idade, sexo e posição social de variações infinitas. A discrição monástica desse cristão é vã. Tudo à volta fala do pequeno Gil, leitor afoito das Confissões de Santo Agostinho e das bulas dos antirretrovirais.

Em cima de sua mesa, na Cúria Metropolitana, há frascos e frascos vazios de Kaletra, Ritovanir e Novir – remédios que formam os coquetéis, aqueles. As amostras servem para orientar iniciantes e desistentes, duas tropas no limite. O que mais apavora, confidencia, são os que abandonam o tratamento, botando tudo a perder.

Gil admite: 2011 é o ano em que estamos, a informação corre como um rio, mas nas famílias, no trabalho, no escambau, os contaminados encontram a mesma casca de banana que os derrubava na década de 1980, quanto tudo começou. Não tem refresco: a ira do outro é amarga de tragar. Não por menos, muitos não contam nada a quaisquer, incluindo aos queridos, ou nem tanto assim, como aos prantos descobrem.

Impossível não lembrar do belo texto A doença como metáfora, da ensaísta Susan Sontag. Susan – morta em 2004 – era uma voz dissonante nos Estados Unidos, seu país. Nas rebarbas da política, escreveu sobre fotografia e até sobre Machado de Assis. Fez de Memórias póstumas um livro pra chamar de seu. A saúde entrou no cardápio ao se descobrir com câncer. Foi quando nos deu um banho no lago gelado.

Ao nascer, escreve Susan, recebemos dupla cidadania – a do mundo dos sãos e a dos doentes. Pelo menos uma vez estaremos do lado que não queremos. Pode ser a tormenta. Quanto mais a enfermidade que nos abraçar estiver envolta em mistério, mais será tida como contagiosa, mais se prestará à metáfora. Explica.

A doença vira uma coisa com nome de outra – tem título científico, mas serve de tradução para o preconceito, o medo, a estranheza... Foi assim com a lepra, a tuberculose, a cólera e, por que não, com a gripe espanhola, o que talvez explique a desconfiança dos curitibanos ante os forasteiros. Teriam sido eles os culpados por nossos mortos de 1918? O outro, sabe cumé.

Não por menos, Sontag escreveu outro ensaio – Aids e suas metáforas. É espeto. O HIV, diz, foi descoberto nos anos 1980, quando viver e morrer já carecia de sentido. Tristes tempos. Não sobrou saída ao vírus recém-chegado – ocupou o lugar do câncer como sinônimo de mal. Chamaram-no de "peste" provocada por devassos. Sontag gralha alto – a aids é uma doença com bônus: às suas dores se soma a solidão.

Tudo o que há em Susan há em Gil. Ela escreve ensaios. Ele ajuda histórias a serem reescritas. Ambos falam dos que não se perdoam nem são perdoados. São mulheres contaminadas por maridos, idosas que mancham de sangue seus vestidos de lacinhos, jovens encurralados. A aids não escolhe ninguém, diz o slogan. Gil e a pastoral também não.

"Ninguém", aliás, foi a palavra que o artista plástico Leonilson bordou num de seus objetos mais famosos – um travesseiro. Leonilson era soropositivo. Diz tudo. Conhecesse Gil, bordaria um passarinho e ali deitaria a cabeça. Depois passaria a mão no telefone. Às favas deuses e monstros. Um café e uma palavra, é disso que se trata.

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