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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Quando alguém pergunta ao veterano da imprensa José Hamílton Ribeiro o que é preciso para ser um bom jornalista, a resposta vem a galope: tem de saber o que representa cada estrelinha na farda de um militar, cada título eclesiástico de um religioso.

A frase é uma blague para atiçar os repórteres: eles terão mais dores de cabeça se ignorarem uma hierarquia do que se errarem um índice de inflação. E sempre acontece. Tirante ser uma operação de risco, entrevistar gente dos exércitos e das igrejas é uma tentação para os proletários dos jornais. Pudera.

As casernas e os claustros concentram ingredientes dignos dos melhores folhetins. São um sopro diabólico à imaginação. Sob a lente de aumento da curiosidade, não raro os fardados e os paramentados padecem debaixo da pena de escritores, jornalistas e cineastas. E devolvem na mesma moeda, pois de castigo entendem. Uma guerra, senhores.

Mas a gente insiste e volta e meia está lá, diante de todas aquelas insígnias a decifrar. Esta semana consegui roubar duas horas do padre Elmo Heck, vigário [ou seria pároco?] da comunidade Nossa Senhora da Conceição, no Botiatuvinha. Era um encontro planejado havia tempos, desde que o vi, do alto do seu 1,95 metro, imponente como um general, entrando na Gazeta com um livro debaixo do braço. Extra, extra.

Tratava-se de sua obra de estreia, O padre e a judia, título que é pura covardia. Por mais que sacerdotes pareçam as figuras menos apropriadas para escrever romances, confesso que não me espantei. Àquela altura, Heck podia inventar o que quisesse, pois já tinha feito o impossível: transformado uma paróquia do Centro – condenada às catenas e às almas – num lugar abarrotado de jovens. O que seriam para ele 430 páginas escritas com açúcar e com afeto? Ora.

Os que não o conhecem, peço que não o tomem por um sacerdote do naipe de Marcelo Rossi, Fábio de Melo ou Reginaldo Manzotti. Nem poderia. A feição severa – próxima de um arauto da Reforma Protestante – lhe priva da aura serena dos clérigos. Para afinar-lhe a voz tonitruante, cujo sotaque pesa 1,5 tonelada por vogal, seria necessário convocar uma convenção de fonoaudiólogos. Não bastasse, sua simpatia confessa pela Teologia da Libertação o aproxima mais do MST do que das massas urbanas em busca de bálsamo espiritual depois de uma semana ao sabor da Diretran e das contas a pagar.

Pois com quase tudo contra, Elmo se tornou um autoridade em evangelização. Ele mesmo não sabe explicar de onde tira tantas ideias pastorais. "Vai ver que é culpa do Google", brinca. Tenho uma hipótese. À revelia de sua formação de "padre de passeata", como dizia Nelson Rodrigues, Heck não enterrou numa gaveta de sacristia séculos de catolicismo tradicional, dos quais lança mão sem medo de ser rotulado de "padre de procissão".

Se com uma mão distribui santinhos, com a outra pode espalhar palavras de ordem. Dá bênçãos à porta do templo e se convida para almoçar, à moda do que fazia em 1900 e bolinhas o italianíssimo padre Natal Pigatto, um mito. Ao mesmo tempo, traz computadores para a aula da catequese, torna comunidades sustentáveis e permite rock na hora da "Glória". O bicho.

Fora os romances. Além de O padre e a judia, está para sair do prelo Jesus apócrifo, uma versão literária dos evangelhos não reconhecidos pela Igreja. E começou uma autobiografia. Faz sentido.

Elmo Heck é gaúcho de Santa Cruz do Sul e em sua casa a língua oficial era o alemão. Mas o moço deu de negociar a vida com a fúria de um judeu errante. Na quinta série, trocou a escola pela enxada. Aos 20, trocou a roça pelo Exército, onde enfim aprendeu a falar português. Três anos depois, trocou a farda pelo hábito carmelita e começou a carpir seu mundo novo.

Lá se vão três décadas. Nesse tempo, trocou o alemão de colônia pelo alemão de Goethe. Graças a uma temporada de estudos na Itália, conversa de igual com a gente de Santa Felicidade. Em que língua for, recheia sua prosa de curiosidades sobre "tudo o que existe".

Na tarde em que o vi, conversamos sobre o João de Barro. Pássaros lhe servem de metáforas para as homílias de domingo, quando atinge cerca de 2,8 mil pessoas. A propósito, uma vez por mês o homenzarrão troca falas com 200 crianças – ele e elas sentadas no altar. O sermão é para elas, no idioma que entendem. Jesus fazia igual, dois mil e tantos anos atrás. Esse Elmo é mesmo um antiquado. Ops.

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