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 | Foto: Antônio More/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
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Muita gente pergunta como se faz para encontrar um bom personagem. Uma das respostas é estar atento à soma das coincidências – basta uma história aqui e a outra acolá andarem em tranças para desconfiar. Eis o ocorrido nesta semana.

Primeiro foi o taxista Caco – da Praça Carlos Gomes – sortindo elogios à Confeitaria Blume­­­nau, sua preferida e tal. Segui­­dinho, me veio a jornalista Bia Moraes, recheando memórias de mocidade com strudels então servidos, não por acaso, na Blu­­­menau.

Dias depois, passo na Rua São Francisco e tropico na calçada de quatro palmos. Espio por trás de umas cortininhas rendadas e vejo a estudantina curtindo adoidado um recinto parado no tempo. Adivinhem qual era? Em riba do balcão estava ela – Ilse – a mulher com quem, tudo indicava, eu deveria falar.

Ilse Baumgart Maiochi, 72 anos, é dona da Confeitaria Blumenau desde 1994. Mas começou a trabalhar no local como cozinheira, em 1963, logo que desembarcou de Rio do Sul, uma entre tantas catarinas no Paraná. Ao chegar, impressionou-se com a beleza da Praça Osório, a altura do Edifício Asa e, creiam, com as temperaturas alopradas: achou um luxo encontrar chuva-sol-neblina ao dobrar da esquina. Não à toa, arrumou serviço num estabelecimento que então funcionava naquelas bandas – a Confeitaria Blumenau.

Ali passou pela primeira prova de fogo em terras estranhas: fritar mais de 60 sonhos/dia num fogareiro mixo de dar dó. Pois é, até onde se sabe, foi graças a sua habilidade em garantir sonhos nas situações adversas que a forasteira conquistou Ertha Weber, a patroa, ganhando passaporte para seguir com ela, em 1966, até a nova sede, na São Francisco – então um boulevard à francesa.

Depois o negócio passou para dona Tecla e ainda para dona Regina. Uma e outra diziam sempre o mesmo: "Ilse, um dia a Blumenau há de ser sua." Era de direito. Mas a guria não dava muita bola – tinha um problema mais urgente a resolver: erguer uma casa. Atente.

Ilse se criou parte em colégio de freiras, parte em casa de família, de modo que, mesmo sendo pobre, nunca tinha morado no sereno. Até alugar uma "tapera" no longínquo Uberaba. Foi quando, "Scarleth", decidiu que teria um teto, nem que para isso tivesse que fritar centenas de sonhos num palito de fósforo. Não precisou tanto, mas quase.

Ilse fez sua morada batendo bolos para fora nas horas vagas. A massa fofa e as claras em neve – virtudes de sua mão boa – lhe garantiram as telhas, os tijolos de seis furos e uma casa provisória da Kürten. Ia precisar – foram afinal 30 anos na lida com pedreiros.

Não, não chorem. A maratona de Ilse merecia um stand up comedy. Só vendo ela contar. Mas se o assunto é a Blumenau, saquem seus lencinhos. Em meados dos 1990, quando finalmente se torna a dona da confeitaria, a São Francisco já não era a rua dos sonhos. A população do Centro tinha envelhecido; e a Riachuelo e transversais gozavam de célebre decadência – com muito sexo, drogas e pouquíssimo rock and roll.

Uma tal de força estranha levou Ilse a continuar assando ela mesma os pães e os bolos que alçaram fama à casa. Pois fez bem. De lá para cá, a confeitaria pode não atrair mais de Lerner a Requião, mas se converteu num daqueles entrepostos que dão oxigênio às cidades – é um espaço da memória, onde os velhos vão para lembrar como foi e os jovens, como era.

"Aqui que eu lanchava com meu marido...", costumam lhe dizer os fregueses antigos, quando entram meio da tarde, roupa de vir à cidade. Ela os brinda com sabedorias. Quando diz "não sigo receitas", é como se aconselhasse: "invente algo". Ao afirmar que decide o cardápio "na intuição" – está sugerindo que é preciso surpreender. Ao garantir que seu segredo é só um, "a manteiga", informa que viver não tem mistérios.

Um dia, hei de ir à Blumenau só para chorar o passado. Quando acontecer, espero que Ilse me fale da época em que fazia doces com ovos trincados. E fritava sonhos num fogareiro. Depois hei de pisar fagueiro nas pedras da São Francisco – agradecendo ao Caco, à Bia e às coincidências.

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