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Numa manhã colocaram o tapume. Na outra, a placa da construtora. Pouco tempo depois, os homens trabalhando. Lá em casa, sempre desconfiamos de que teríamos um prédio como vizinho, com dezenas de janelas escancaradas para a bagunça do nosso quintal. Mas, como demorou 41 anos para acontecer, nos acostumamos com a sorte e, agora, mal-agradecidos, só dizemos como o profeta Hardy: "Oh dia, oh céus, oh azar".

Sou da Baixada Atleticana, no ponto exato em que o maior declive da região – onde corria o Rio Água Verde – ganha fôlego e se ergue rumo à Rua Silveira Neto, um capão bonito habitado por Parolins e Gabardos. Essa subidinha boa para as batatas da perna nos garante ver, ao longe, o paredão de prédios das avenidas Iguaçu, Silva Jardim, Sete de Setembro e Visconde de Guarapuava. É uma muralha de concreto e luzes. É nossa Times Square. É nossa laje.

Quer dizer, era. A nova construção caminha para o terceiro andar. Em duas semanas, calculo, a vista de uma vida inteira vai desaparecer, como as Sete Quedas, se me permitem. Não é nosso primeiro sequestro de paisagem, mas com certeza é o mais traumático.

Até a década de 1980, enxergávamos a torre da Igreja do Coração de Maria, um marco do velho Rebouças. Ergueram um prédio, que nos roubou a aparição diária da Virgem, dando-nos em troca um vidro fumê. Ano passado foi a vez do "sumiço" da Praça do Japão. Não era assim uma visão do Monte Fuji, mas, quando vinha visita, era só apontar com o dedo e dizer: "Tá vendo aquele prédio com cara de tenda árabe? Pois o Japão fica lá".

Sem Japão, sem Maria, restava-nos a vista dos prédios, dois quilômetros distantes, com céu de sobra e a sensação boa de olhar por cima da copa das árvores. Um privilégio, garantido pela longevidade da vizinha Clélia Carraro. Dona Clélia era moradora da Curitiba antiga. Sua casa de madeira contava com jardim na frente e atrás, tudo nas dimensões da Colônia Faria. Ameixa amarela? Tinha. Milho? Ahã. Girassóis? Nem te conto.

Seu muro, de granito, tinha escala humana. Muita gente pegou na mão e beijou com os préstimos da mureta da dona Clélia. Não que ela aplaudisse desfrutes no seu território. Ralhava. Mas a veterana – ex-funcionária da Todeschini – podia tudo, principalmente porque, para nossa alegria, botava para correr os engravatados das construtoras, que apareciam em revoada, de olho naquele terrenaço. "Só quando eu morrer", devolvia. Até que morreu.

Estamos em fase de despedida. Não passa dia sem que alguém de casa lamente o horizonte perdido. Minha sobrinha Júlia, 10 anos, tira foto dos andaimes que sobem, sobem, uma tortura. Tomara um dia ela ganhe dinheiro com isso. Tenho uma teoria sobre a janela com vista para as avenidas: se não fosse a dita cuja, já teríamos trocado tiros. Na hora do arranca-rabo em família, um dos briguentos sempre acabava ali, debruçado, estrategicamente de costas para os desafetos. A vista da janela era terapêutica.

A depender do grau da contenda, consolava-se imaginando que alguém, nos "um por andar" lá na Silva ou na Sete, também tinha seus problemas, quem sabe até maiores, já que dinheiro não traz felicidade. Na pior das hipóteses, o emburrado maldizia não ter nascido numa daquelas outras janelas, de preferência num apê de 600 metros quadrados, dizendo para si mesmo que ser rico é meia felicidade andada. A vista da janela era antropológica.

A essa altura, caro leitor, você deve estar pensando por que diabos está aturando a nostalgite de um garoto enxaqueca. Vamos discutir a relação. Custei a me decidir por esse tema. Pensei falar de carnaval. Ou responder por quais mistérios Curitiba tem tanta farmácia. Mas o drama da paisagem na janela é universal, a tísica do nosso tempo.

Ocupa pensadores, inclusive. No clássico Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman conta que, nos inícios das cidades modernas, os mais abonados viviam nos andares mais baixos, sem belas e boas vistas, portanto. A vantagem é que podiam escapar facilmente em caso de incêndio ou se safar mais rápido se os black blocs de antanho decidissem botar para quebrar. Com a tecnologia dos elevadores, foram subindo de andar, ganhando mais acesso à paisagem.

No necessário A condição urbana, o antropólogo francês Olivier Mongin mapeia movimentos sociais que não engolem a seco a verticalização das cidades. Esses grupos reclamam para si o estatuto da paisagem. Em Nova York, atazanam o mercado imobiliário com placas "na minha quadra não" e promovem occupys que dão dor de cabeça. Mas nesse caso, deixe quieto. Não somos melhores que ninguém. A paisagem aos novos vizinhos pertence – que cuidem dela por nós. O Brasil tem mais com o que se preocupar. E alalaô para todos nós. Tchau.

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