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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

A leitora Guilhermina Cavalli me escreveu, certa vez, dizendo que lê esta coluna "porque se sente apresentada a uma nova pessoa, a cada semana". Percebi no e-mail um tom de protesto, ainda bem que sem black blocs: justo naquela edição não havia pessoa nenhuma no texto, o que, às vezes, acontece. Na falta de alguém sobre quem falar, devo ter tratado de mim mesmo. Eis o bolo.

Depois disso, sempre que entro numa maré baixa de retratados, lembro que vou desapontar a Guilhermina, por quem nutro devoção. Fico com remorsos. Garanto-lhes: não se encontram ledoras da mesma lavra por aí. Só um doido varrido não se ocuparia de agradá-la com papos de anjo e os melhores licores.

Além de ser professora aposentada de Língua Portuguesa, o que me reserva comentários gabaritados, Guilhermina é minha vizinha em dois territórios – o do bairro e o das memórias. Nunca nos vimos, mas sabemos que moramos perto, que temos amigos em comum, que pisamos nos mesmos paralelepípedos.

Essas coincidências, acredito, explicam por que as observações que me envia por e-mail são talhadas nas lides do afeto. Não têm preço. Nossa amizade virtual dribla as distâncias impostas pela cidade grande. É especiaria rara em meio às hordas de consumidores que vivem de soltar os cachorros nos escribas. Doces beagles? Claro que não.

"Gui", se me permitem, deu aulas num dos colégios onde estudei, o Pedro Macedo, no Portão. Graças à escola, inexistem entre nós os tais seis graus de separação. Um de nossos elos é a educadora Laís Groff, sua colega de magistério e minha ex-professora de Educação Artística, a quem devo ter dado a volta ao mundo sem precisar sair da carteira.

O outro é o Devanir Lopes da Silva, o Biro, carpinteiro e escritor, ex-aluno do "Pedrão", onde redigia redações nota 10 para amigos e folgados. Quando o Biro teve de abandonar os estudos para trabalhar, Guilhermina não o deixou para lá. Batia palmas no portão dele, na Vila São Jorge, e lia o que o guri produzia, dando uma mãozinha na gramática. Esse episódio me emociona, mas sua protagonista não me dá muita corda: o que fez lhe parece natural.

Tanto dona Laís Groff quanto o Biro tiveram fragmentos de suas histórias contadas aqui, para júbilo de minha dileta internauta. Escreveu-me nas ocasiões. Apesar da frieza do meio eletrônico, suas mensagens são legítimas cartas, mesmo sem envelope. Ao que parece, as envia na mesa da cozinha, ao som do apito da leiteira ou da chaminé da panela de pressão, enquanto faz o sagrado rango do marido. Nunca lhe falta humor, expresso em fartas onomatopeias. Criativa, usa letras coloridas. Franca, avisa que vai ficar um tempo sem mandar notícias. Meses de secura podem nos separar. Mas quando volta, oba, é como se tivéssemos nos falado ontem na fila do pão.

Antigamente, cada jornal criava seu próprio público padrão. O jornalista que entrava no The New York Times, por exemplo, tinha de produzir pensando numa menina negra de 12 anos do Bronx. Quando comecei na profissão, uma colega ditava: "Temos de escrever para que a dona Danuta do Santa Quitéria entenda". A tática ajudava o repórter a encontrar a temperança – nem muito afetado, nem muito pedestre.

Nos tempos em que atuei na cultura ficávamos de olho na plateia do Guaíra, em busca de alguém que representasse os leitores em geral. Elegemos uma jovem loura e bem criada, que flagramos comentando a "questão do belo" com uma vizinha de poltrona. Se tantos séculos depois de Aristóteles, duas guerras mundiais e tanta barbárie no mundo a beleza ainda a incomodava, tinha também de nos mobilizar. A cada nova edição, restava arrancar os cabelos para mostrar que a arte também passava pela feiura e pelo grotesco.

Era um exercício divertido, mas virou poeira com a alvorada da internet. Todos os dias caem sobre nossas cabeças pesquisas sobre o perfil do público. São sensacionais, mas seria um porre se não houvesse, a contradizê-las, o e-mail, essa deliciosa ferramenta de imprecisão estatística. Mensagens nos permitem imaginar. Podem ser furiosas como os últimos temporais. Fortes como um abraço. Confidências ao ouvido. E podem vir da Guilhermina, a leitora ideal às voltas com a vida real. Quando ela escreve, ganho o dia.

Desculpe amiga, não apresentá-la hoje a alguém diferente. Foi mal. Fica para a semana que vem. Prometo.

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