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Fim de tarde, passeando com minhas duas meninas, a caçula no carrinho, encontro duas adolescentes namorando debaixo de uma paineira nua. Beijam-se com a pressa atrapalhada dos muito jovens, seus corpos se fundindo naquele azulzinho convencional dos uniformes escolares. Sem abrir os olhos, buscam sumir à sombra da grande árvore sem folhagem, decerto já escaldadas, com medo de alguma censura.

Acima delas, tudo são galhos secos e fálicas bromélias, róseas e tristemente pensas, meio derrotadas, nem sei se já conscientes do que virão a simbolizar nesta crônica. Só sei que as namoradinhas, de tanto quererem sumir e consumir-se, nem nos veem passar. Esquecem de tudo, e até dos espinhos no tronco da paineira. Na verdade, já estão bem escondidas de nós, ocultas uma na outra, e quem sabe esse amor vigoroso de nossos primeiros anos não seja exatamente isto: um cálido esconderijo, uma fantasia inviolável. Sorte de quem soube vesti-la a tempo.

Minha filha mais velha, ao avaliar o quadro amorável à nossa frente, aponta para as bromélias e diz: “Veja, pai, essas flores combinam com o cabelo cor-de-rosa das meninas”.

Na escola, pedem a minha filha que responda com um desenho à seguinte pergunta: qual o trabalho do papai? A menina desenha um banco de praça e nele, lado a lado, ela e eu

Combinam, concordo, ficou bonito. E lembro da cerejeira da Ivo Leão, ao pé da ponte sobre a Nicolau Maeder. Vamos lá visitá-la. Mês passado estava florida, e qualquer um que passasse por ela a via e fotografava. Agora o cenário é outro, a exuberância pegou férias, as flores caíram, e sem elas a humanidade não vê razão para fotos. Tudo bem. Só assim uma cerejeira pode voltar a ser uma árvore anônima.

Debaixo dela, também anônimo, dorme um homem nu. Não totalmente nu, esclareço. Ele veste uma caixa de papelão média, que lhe cobre do peito às coxas. Os ombros e as canelas, a cabeça e os pés, ele os deixa ao relento. Não, aquilo não lhe serve de esconderijo ou fantasia, feito o amor das meninas sob a paineira nua. Aquela é a sua casa, e aquele homem nu, um Diógenes desalojado de seu barril, menos cínico que sensual. Só não creio que procure, como o filósofo grego, homens honestos por aí. Acho que procura homens, só isso, e que importa sua honestidade? Procura qualquer homem ou mulher, um corpo onde se esconder, um azul no qual fundir-se.

Minha filha mais velha, mais uma vez, observa: “Este homem, pai, lembra uma tartaruga”. E é verdade. Andamos um pouco, sentamos no meio-fio, e digo a ela que antigamente havia um povo, e nem sei que povo era esse, que via na tartaruga — casco arredondado, barriga reta — uma ligação simbólica entre o firmamento e a terra. E um ser humano não seria mais ou menos isso, essa massa de emoções e durezas, carnes e carapaças, a ligar o céu ao chão?

Dias depois, na escola, pedem a minha filha que responda com um desenho à seguinte pergunta: qual o trabalho do papai? A menina desenha um banco de praça e nele, lado a lado, ela e eu. Fazendo absolutamente nada. Imagino a professora balançando a cabeça e sorrindo, com certa gastura, não querendo magoar a aluna, mas já adivinhando o vagabundo em seu pai. E tudo bem, eu acho, e também sorrio, e resignado balanço esta minha cabeça dura, discretamente retrátil.

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