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De manhã, a Santos Andrade parece um berçário de barbados. Ali ressonam dezenas de homens em suas mantas, as camas feitas com capricho na noite anterior, cada uma debaixo de uma árvore, na grama curta. Tantos corpos imóveis lembram uma cena de batalha, uma trégua ditada pela exaustão geral, e nem poderia ser diferente. Em Curitiba, quase toda praça é de guerra.

Quem me contou o caso foi justamente um desses guerreiros. Um cara que, às vezes, dorme sob uma marquise aqui da Ébano Pereira, o que nos torna vizinhos de ocasião. Aviso que não devemos tomar por verídica a sua história, pois é sabido que todo bom narrador cultiva algum amor pela mentira e pela subversão. Por outro lado, toda narrativa tem um fundo lodoso de verdade, e mesmo as que não têm fundo nenhum nos propiciam uma queda cuja vertigem já nos pode compensar a viagem e os acidentes. Saltemos juntos, é um convite.

Pois esse vizinho me contava que, na Santos Andrade, todos escolhiam uma árvore sob a qual adormecer e esperar pelo dia ou pela morte, tanto fazia, o que dava à praça certo ar de Getsêmani, um jardim de expectativas latentes, no eterno aguardo da soldadesca. O interessante é que, por motivos inexplicáveis, ninguém topava dormir debaixo do guapuruvu gigante defronte ao Teatro Guaíra, próximo à máscara risonha da atriz Lala Schneider. Questão boba, de medo e respeito.

Até aparecer por lá um forasteiro alegre e desrespeitador, sempre há um, e armar bem ali a sua tenda: um acolchoado fino, duas cobertas de lã, uma trouxa de trapos e papéis desimportantes. O lindo guapuruvu velaria por ele, dizia, e o que de ruim poderia acontecer? O que pode uma árvore enorme em meio a tantos edifícios nossos, espetada entre os monumentos humanos, templos, arenas e tumbas?

Amanheceu, é fato. O sol apagou as estrelas e também o cara sob o guapuruvu. Não o acharam entre seus panos embolados. Sumiu sem que o vissem se levantar de madrugada, sem que ninguém o levasse dali. Deixou para trás tudo o que tinha, e até as roupas que vestia. Curioso, perguntei se a terra o havia comido. Quase isso, me disse o outro: a terra se abriu, mas quem realmente o comeu foi a árvore. Ele caiu entre suas raízes e foi tragado por ela.

Dei risada, claro, a história era doida, mas, e depois? Bem, depois se passaram seis meses, um ano, e o homem sumido virou lenda, memória, mártir, seiva, santo. Até reaparecer na praça de surpresa, num início de inverno, carregado de casacos e cobertores novos, disposto a distribuí-los entre os ex-companheiros de dormitório. Limpo e bem vestido, confirmou as suspeitas da turma: ele fora, sim, devorado pelo guapuruvu.

Mas tinha um detalhe: na manhã seguinte à abdução, acordou misteriosamente em Morretes, às margens do Nhundiaquara, à sombra de outra árvore da mesma espécie, talvez uma ancestral da que o engoliu. O retorno a Curitiba foi doloroso, uma longa jornada de desbravamento que lhe trouxe recompensas preciosas. No caminho, garantiu ele, numa sequência de lances milagrosos e que dispensavam detalhamentos, prosperou.

Sou um sujeito lógico. Imaginei que a notícia daquele sucesso provocaria nos outros o desejo de dormirem, todos, debaixo do guapuruvu mágico. Mas, segundo meu vizinho, ninguém se animou. Havia ali um homem próspero, asseado, rico em generosidade. Um homem bom, mas não exatamente o mesmo de antes. Algo de sua essência tinha ficado na árvore, primeiro aprisionado e, depois, repartido entre a folhagem miúda que, então, já começava a cair, a chover sobre todos. E o narrador encerrou o caso com uma pergunta: com quantas quedas fazemos nossa história?

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