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Quarta chuvosa, lua crescente, quase cheia. Curitiba vive a surpresa de um céu limpo. Antes de deitar, me vem a tentação de menino: pegar o telescópio e sondar a noite bonita. Mas me bate uma moleza e desisto. Preguiça de tomar providências. Procurar lentes, montar o equipamento sobre o tripé, abrir a janela apesar do frio, fazer a mira. Vai que um vizinho me vê, atrás da cortina? Decerto me tomará por um tarado vulgar, e não por este franco-atirador à espreita de um meteoro.

Decido continuar à janela, imóvel. Tão mais fácil, o olho nu na lua nua, a vidraça fechada, afinal é inverno. Deixo que se escoem três minutos de contemplação, até achar que já posso dormir, oxalá sonhar, o dia enfim acabado. Mas um escapamento aberto, ruidoso, vindo da Amintas, invade meu apartamento, e aquilo me soa como um longo ataque de flatulência. É a cidade zombando de suas áreas sonolentas.

Depois, faz-se um silêncio curto. Dez segundos, e vêm os gritos. Os palavrões na rua, os pedidos de ajuda, as interjeições de espanto. E, claro, os cãezinhos de prédio latindo nas soleiras do Alto da Glória, as viaturas e ambulâncias, o alarme de tantos carros vazios, perturbados em sua solidão noturna.

Foram tiros, agora entendo. O que ouvi não partiu do escape de um veículo. Foram disparos de metralhadora, a primeira que ouvi na vida, constato, já esquecido do frio, da lua, do sono e do romântico meteoro do meu parágrafo de abertura. Porque meu mundo, a partir desses tiros, é só isso: a novidade da metralhadora em minha esquina.

Mas uma metralhadora, o que é? Nos filmes, uma máquina austera, não raro heroica, peças de metal que se encaixam com elegância, a morte ou a justiça nos braços de bons ou maus atores e personagens, tudo a serviço de uma narrativa moral. Sua música percussiva nos é familiar, lembra o centrifugar de certos eletrodomésticos, a carícia dos secadores de cabelo, o mantra expectante de um micro-ondas.

Não a metralhadora aqui da esquina. Ela não soou como uma arma de cinema, mas como uma sequência desgovernada de traques, que pareciam machucar até o cano que os cuspia. E uma metralhadora, na verdade, deve ser aquilo mesmo, uma reação violenta e intestina, desligada da coragem e da inteligência, uma latrina às avessas. Há, inclusive, quem se entrone sobre ela.

Do homem que a metralhadora matou, apenas ouvirei dizer que correu, tentou fugir e terá sido tarde demais. Jamais conhecerei os detalhes do crime que pôs fim à sua história, que também não me diz respeito. Só saberei que foi assassinado debaixo da minha janela, num meio-fio da General Carneiro. E uma rua que se chama General Carneiro, penso, patente e nome de herói de guerra, não parece adequada a um fuzilamento?

No dia seguinte, chuva de volta. À tarde, passo com minhas filhas pela tal esquina e a encontro alagada. Os bueiros não suportaram tanta água, e o sangue do morto, aquele caldo grosso, cor de araracanga, tão vivo, alegre e fora de lugar, já sumiu, misturado ao barro das enxurradas que descem a Amintas. A noite de quinta chegará logo, trazendo consigo a lua cheia. Mas ninguém olhará para ela, tudo sobre nós será nuvem. E a promessa de novas rajadas.

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