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Sempre a vejo se esgueirando por estas ruas bonitas com o sobrenome Leão. Luiz, Agostinho, Rui, Ivo, Carlos Eduardo. Nela, três coisas me chamavam a atenção. A primeira, o tamanho. Jamais encontrei mulher maior e mais forte. A segunda, a mochila em suas costas, que lhe dá um aspecto corcunda. E a terceira, certa dissimulação maldosa. No começo, ela me gelava com o olhar, deixando claro que eu interrompia algo. E tudo bem. Viver em comunidade é estar constantemente interrompendo os outros. O segredo da convivência é saber interromper.

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Antes, quando me via, ela dava uma de perdida, fingia procurar um endereço. Com o tempo, habituou-se à minha presença, o andarilho intrometido, novo na vizinhança. E, percebendo que eu não a ameaçava, baixou a guarda e os olhos.

A coroa-de-cristo, lembrei, era usada em muitas simpatias, não de amarração, mas de afastamento entre amantes

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Aí pude flagrá-la em ação. A mulher é uma coletora. Semana passada, a surpreendi de cócoras diante de um casarão, ao pé de um muro alto, atacando um canteiro de coroas-de-cristo. Ela me viu, levou um susto, controlou-se e, dane-se, voltou ao que estava fazendo, pra que se esconder de mim? Com a mão esquerda protegida por uma estopa, segurava o espinheiro. Com a tesoura de podar na direita, atorava seus galhos, cuidando para não sujar a pele com a seiva tóxica da planta. Arrancava, então, as folhas e as flores de cada toco e guardava o resto na mochila.

Achei graça naquele seu furto, e passei a considerá-la uma inocente ladra de mudas, coisa tão antiga quanto perdoável. Em seguida, eu mesmo romantizei a cena, acostumado às divagações divertidas, imaginando que aquela mulher poderia muito bem ser uma espécie tosca de Perséfone, colhendo seu buquê espinhoso à espera do inevitável rapto, preparando-se para a sua descida ao inferno.

Isso até eu vê-la sair do Cemitério Luterano, num fim de tarde, a mochila vazia. Nada entendo de feitiços, mas, ora, tive uma educação suburbana, entre padres, bruxas e benzedeiros. E foi impossível não lembrar de uma série de histórias ouvidas há décadas e, nem sei por que, largadas no grande baú de nossas memórias inúteis. Ou melhor, sei. Para viver, é preciso salvaguardar alguma lógica, e nem sempre é bom manter aberta a canastra de nossas maluquices.

A coroa-de-cristo, lembrei, era usada em muitas simpatias, não de amarração, mas de afastamento entre amantes. Magia ruim, servia para rachar casais, famílias, amigos, e as receitas misturavam sementes de mamona, velas roxas e terra de cemitério. Bem, nem sei por que conto isso aqui. Ou melhor, sei. É porque a bruxa do Alto da Glória, sem querer, arrombou minha canastra, me fazendo divulgar, nas páginas de um jornal, as suas atividades.

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Pior para ela. Baudelaire dizia que a maior arte do diabo é convencer-nos de que ele não existe — e, sim, estou certo de sua inexistência. O que não me impede de lembrar aos leitores que o mundo de hoje ainda é o de ontem. Podemos andar por aí, cada vez mais conectados; a conexão, aliás, é nossa tara. Mas sempre haverá quem contrate os magos, quem carregue pela vida sua mochila de espinhos, quem pague uma fortuna para nos ver separados, odiando, odiando, odiando uns aos outros.