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Na Saldanha Marinho, um homem é perseguido pela mulher. Correm no meio da rua, entre os carros, as buzinas cantando. Ela é mais rápida que ele, não por estar em melhor forma, mas por demonstrar maior interesse na caçada. Na verdade, o homem se move com displicência, simulando sossego e confiança, quase como se fugisse corajosamente. E uma contradição, vocês sabem, é sempre pesada.

Assim, a corrida não dura nem meia quadra. A mulher alcança sua presa bem em frente à antiga sinagoga, puxa o cara pela gola da camiseta azul, sem medo de machucá-lo. O homem se contorce feito um grande peixe arpoado e, apesar do estrangulamento, consegue balbuciar uma súplica: que ela lhe conceda uma trégua curta, o suficiente para que ele possa tirar a camiseta. E explica:

"Essa você não vai estragar!"

A mulher conhece a vida, compreende a necessidade de se preservar um trapo, e permite que o homem se dispa para a batalha. O tronco dele é magro, as costelas tristes, aquela musculatura de camundongo engaiolado. Exibe uma série de tatuagens ordinárias: uma velha, que imagino ser sua mãe, ao lado de uma Virgem Maria de batom e dois nomes femininos ingleses.

A mulher aproveita aquele instante de paz para mais uma vez estudar o corpo do seu homem, um esqueleto nu ao sol, tão conhecido de seus abraços, e até parece que vai desistir da briga. Mas não: o cara dobra a camiseta azul com capricho, e a acomoda sobre as pedras soltas da calçada. Depois fecha os olhos e estufa o tórax. Prepara-se.

Ele deixa que a mulher o arranhe com raiva, que marque sua pele, estapeie sua cara, tire algum sangue de seu peito. Mas, a cada golpe, o homem se enche de um poder renovado, uma energia suja, e sua resistência risonha vai enfraquecendo a rival. Ele sorri inclusive para nós, a audiência que os rodeia sem saber por que ou por onde separá-los.

Ouvimos as acusações que ela lhe dirige: cadê o meu vintão, você deu pra ela, ela roubou meu brinco, você dormiu na casa da cigana, ela me contou tudo. Ouvimos tudo isso, mas de que adianta ouvir? Ela grita e se debate em vão, até se esvaziar de palavras e forças. Exausta, senta no meio-fio e esconde o rosto entre os joelhos.

O homem estanca o sangue que escorre de um de seus mamilos, lambe o dedo, saboreia a própria ferida. Veste a camiseta e vai embora, vitorioso, sem dizer nada, sem olhar para trás.

Mas a mulher reage àquela evasão. Apanha do chão uma pedra e se levanta devagar, os olhos na nuca do outro, que se afasta, despreocupado. Ela dá um passo adiante, um tremor a domina, a pedra magoando sua mão crispada, e algo nos diz que a luta não acabou, o pior ainda por vir, por que não a impedimos?

Não sei. Só sei que deixamos que a mulher levantasse o braço, abrisse a boca e mordesse a pedra. Como quem morde a sua última maçã do amor.

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