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Estamos na Carlos de Carvalho. É meio-dia e o povo se espreme sob as marquises. O vento vai nos ensopando devagar, do umbigo para baixo. Somos uma massa úmida de angústias, mas um de nós, só um, não liga para a chuvarada. É um homem de 40 anos, sentado num degrau de portaria. Observa a água avançar pelo asfalto, no sentido oposto ao do trânsito. A sujeira impermeabilizou suas roupas, e o couro de suas botinas, descolando da sola, nos envia um sorriso de cartum.

Um outro homem, da mesma idade, executivo ou advogado, chega correndo. Ele se acomoda entre nós, batendo os pingos do paletó. Vê o cara no chão e, de repente, sofre um ataque de benevolência. Pergunta ao sujeito se ele já almoçou. Como resposta, ouve um não desconfiado. Parece aprovar a fome do outro, e pede a ele que espere cinco minutos, não saia daí, vou comprar uma marmita para você. Faz menção de entrar num restaurante, mas o homem sentado o detém aos bufos, contrariado, sabe que o brasileiro é autoritário até na caridade. Já de pé, pergunta: “E eu pedi isso, por acaso?”

O caridoso não entende, como é que é? O outro explica que não é de pedir, não gosta de receber ordens de ninguém, e muito menos comida. Só estava sentado, de boa, admirando a chuva. O advogado, ou executivo, dá sinais de enfezamento, mas é logo amansado, pois o ofendido torna a lhe fazer perguntas duras, qual é a sua, o que quer comigo, afinal? Não é mendigo, nem homem de esperar machos, marmitas ou respostas, e por isso dá logo o seu veredito: “Você quer é coisas comigo”. E enfatiza o substantivo “coisas”, que repete uma dúzia de vezes, de boca cheia, como se o comesse.

Somos uma massa úmida de angústias, mas um de nós, só um, não liga para a chuvarada

Que coisas seriam essas, jamais saberemos. O executivo, ou advogado, corroído pela mágoa ou, talvez, por secretas perturbações, nem discute. Foge aos saltos, sacrificando a própria reputação à tempestade. Encharcado, some na esquina da Cabral.

Agora estamos na Riachuelo. A chuva é forte, mas o vento nos dá uma trégua. Na marquise, uma moça busca convencer um velho a perdoá-la. Não sabemos qual foi seu erro, mas o casal age como se debatesse um crime. Ela jura que o ama, que foi a última vez. Ele tenta parecer furioso, mas a musculatura de seu rosto anda exausta de machezas. Infantil, apenas vira a cara e resmunga: “Não perdoo”.

A moça pergunta o que deve fazer para adoçá-lo, e ele garante que nada. Ela insiste, o senhor endurece e o impasse os imobiliza, até ela anunciar uma ideia nova, extrema: “E se eu me ajoelhar nesta poça d’água, de calça branca?” O velho vai protestar, mas não dá tempo. Ela se ajoelha, abraça as pernas dele, quase o derruba. A calça branca está perdida, e o velho, embora mau, não suporta tanta degradação. Começa a chorar e, aflito, ergue a namorada. Entre lágrimas, amoroso, a repreende: “Era a tua melhor calça, neném!”

A água sobe depressa na Visconde de Nácar, e um casal emburrado gruda as costas na vitrine da loja de lustres. Homem e mulher nada dizem, há muito deixaram de ter bocas, línguas, cordas vocais. Mas, quando a enxurrada traz até eles o cadáver afogado de um rato, a mulher reaprende a falar e diz, penalizada: “Coitadinho”.

Santo roedor, é um duplo milagre: o homem também reencontra seu verbo e sua comunicabilidade, mas tem o sangue irritadiço, e suas palavras são de ódio, onde já se viu ter dó de rato, um bicho que nos transmite doenças? Ele parece ter razão, é o que achamos todos nós, sob a marquise, mas a esposa, calma, logo nocauteia o marido: “Você também transmite doenças, já esqueceu?”

Dito isso, ambos voltam ao silêncio que os protege, e suas bocas cicatrizam para sempre, como feridas antigas, ou bueiros entupidos.

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