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Devagar, o velho cruza o Passeio Público. Segue mancando, meio de lado, um olho morto e a perna dura, paciência, o joelho não quer mais dobrar. A mão esquerda vai embolsada, decerto por vergonha da tremedeira, indício de alguma frouxidão. Mais exibida, os dedos grossos, a direita carrega uma sacola plástica, de supermercado. Lá dentro, pelo barulho, chacoalham três ou quatro latas de cerveja.

O dia pede uma gelada, e o velho não é bobo. Sabe que a vida é uma só, e a dele ainda menos, uma raspa de tacho. Viver é agora, é esse raio de sol entre os plátanos, pior com frio e chuva, numa cama de asilo.

Fato é que a manhã está bonita, os jacarandás floriram, a primavera voltou e tudo é um sinal. É isso o que nos dizem as aves, gritando na copa dos ciprestes, dos ipês, das paineiras. Pois o velho olha para o alto, contemporâneo mais das árvores que dos prédios, e posso imaginá-lo pensando: engraçado, a beleza desespera os pássaros, nisso somos parecidos.

Desinteressado, ele não vê que cinco senhoras o vigiam. Lagarteiam ali, trepadas na cerca da Carlos Cavalcanti, a bronzear coxas e barrigas, os corpos estendidos feito roupas postas ao tempo. Fumam cigarros que jamais se apagam, são sonhos baratos, fumegantes, projeções de antigos desejos de sublimação, tóxicos, sempre ardendo. Uma delas salta e intercepta o velho:

"Vê uma cervejinha dessas, meu vô?"

Negativo, ele não vê nada, sequer a ouve. Nem quer saber de mulher, já era, suas motivações mudaram. Pálido, invade a vasta caixa de areia do parquinho, fascinado pelos brinquedos que se erguem diante dele, gangorras, escorregadores e carrosséis, as crianças correndo, perigando derrubá-lo.

O velho se aproxima do balanço e avalia o comprimento de suas correntes, a tira de borracha que lhe serve de assento. Ao seu lado, uma menina se lança para cima e para baixo, para trás e para frente, voando num vaivém alegre e irresponsável, que parece zombar da pretensão dos relógios e desafiar a natureza triste dos movimentos pendulares. E o rangido daquele balanço, tão agudo e áspero, é mais um canto de pássaro no Passeio Público.

Com dificuldade, o velho senta na tira de borracha e quase cai de costas, maldita perna indobrável. Algumas mães o acodem, o senhor não pode brincar aí, vai que racha o quadril, quer morrer? Mas ele apanha uma cerveja e a abre, resmungando:

"E quem não quer?"

As mães se afastam, magoadas, enquanto o velho, fazendo careta, vira o primeiro gole da bebida já quente. É quando escuta a menina atrás dele:

"O senhor quer que empurre?"

O velho a examina: um anjo num vestidinho de caveira, laços cor-de-rosa, seis, sete anos e já de batom, purpurina nas unhas. Que se dane, ele acaba topando, manda ver. Viver é agora, é o sol entre os plátanos, o suor na lata de cerveja. E um empurrãozinho de criança.

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