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Com sorte, qualquer um de nós pode vê-la por aí, basta passear a pé pelas Mercês. E digo sorte porque me refiro a uma moça rara, recém-saída da meninice, mas já bem severa, seja no olhar perdido de rainha má, seja no jeito de esconder o rosto à nossa passagem, sem com isso parecer arrogante. Aliás, não vejo desprezo no modo como nos trata; ela é, antes, uma artista da ausência. Transporta sua beleza pelo bairro como uma velha musa da bossa nova, desnorteada, a caminho não do mar, mas de qualquer outra grandeza que a devore e imortalize. Pena não sermos grandes: na cidade, cada um é a sua poça d’água.

Não pretendendo evaporar tão cedo, acusado de cupidez ou concupiscência, evitarei as ebulições inúteis. Não descreverei aqui, neste espaço tão breve quanto nobre, a aparência da moça; direi somente que é linda. Quanto à espessura de seus lábios e sobrancelhas, à cor de seus olhos e sua pele, ao corte de seus cabelos morenos, castanhos ou louros, e a tudo que nela houver de profundo, saliente, sinuoso ou sibilante, prefiro calar. Preencham vocês mesmos tais lacunas, com as fantasias ou as paixões que julgarem necessárias à construção de uma personagem sem rasuras. Descrevê-la seria deformá-la e, pior que isso, descartar os leitores delirantes.

Na verdade, o que preciso contar sobre essa moça diz respeito não a ela diretamente, mas a um de seus acessórios, embora a escolha desta palavra, "acessório", dita por mim quase como uma piada, me cause vergonha. É que não estou falando de um colar ou de um par de brincos, e sim de um bicho. Uma ave colorida, eternamente empoleirada sobre os ombros perfeitos da dona, marchando de lá pra cá, dócil na conduta, mas a elaborar, quem sabe, íntimas estratégias de fuga e vingança.

O conjunto é atraente, de uma beleza estranha e descomunal. E quando as vemos juntas, a menina e sua calopsita sob as tipuanas da Padre Anchieta, ou quando as encontramos na feira, na farmácia ou no mercado, nossa reação é sempre de susto, alegria e gratidão. No entanto, guardamos silêncio. Contaminados pela sobriedade da dupla, não ousamos fazer qualquer elogio à lindeza do pássaro: vai que a moça nos toma por tarados comuns?

Se ela, avoada, é capaz de perceber a confusão do mundo à sua influência, não o demonstra. Já a calopsita é diferente: encara a todos com aquela mirada lateral, tão característica das aves, buscando em nós uma pista, uma luz, uma solução para a vida. É uma sondagem rápida e apaixonante, que quase nos faz esquecer que aquele pássaro tão poderoso costuma ter as penas de voo podadas a tesoura.

Até as tirivas da Praça 29 de Março, ruidosas, se calam diante de tamanha tragédia ornamental: uma ave de penacho longo, cores felizes e asas curtas, uma carne que não se aproveita de ser carne. E mesmo os últimos gatos de rua de Curitiba, residentes num terreno baldio da Alameda Júlia da Costa, se comprazem em rejeitá-la, bocejando à sua presença. Decerto há um pacto entre os felinos e a moça. Os gatos e os belos, afinal, são aliados históricos, cúmplices em tantos crimes de beleza.

De qualquer forma, a menina passa e o pássaro vai com ela, no balanço doce, triste e irresistível das mais ternas farsas subtropicais. Não as decifrei até agora, e nem vou decifrá-las, a moça das Mercês e sua calopsita, mas, como pequeno ficcionista alojado num grande jornal, me sinto capaz de sugerir ao menos uma possibilidade de deslindamento. A de que essa menina, como qualquer um de nós, não esteja realmente certa de trazer às costas um pássaro que sofre, uma parte de si que lhe quer escapar e virar saudade, voar e deixar de ser drama.

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