• Carregando...
 | /
| Foto: /

No parquinho do Passeio Público, um pai de meia-idade busca um canto onde reinar. Exausto, senta sobre o seu tédio, e é este o seu grande trono. Com uma espada de plástico, penetra a areia entre seus pés, fingindo pajear o filho pequeno, um príncipe suburbano, no trepa-trepa. Na verdade, sua atenção salta de uma criança a outra, ou melhor, de uma a outra de suas mães, pois estamos no reino do amor, e há mães por toda parte, bonitas ou não, que importa?

De um banco próximo, uma mulher o vigia. Não é nobre nem maternal, não vem adornada de filhos ou cetros. Naquele pai, admira o perfil de guerreiro, se bem que aposentado, atraída pelo pateticismo de sua espada nua, sacada apenas para agradar um menino. Ela, por sua vez, não manuseia uma arma, e sim um buquê de flores, colhido ali perto, e o debulha como quem tricota o sapatinho de um bebê ausente.

O espadachim a flagra sorrindo para ele, e aquilo o assusta e embevece. Destreinado, se faz de bobo, e parece estar pesando os prós e os contras de se flertar com uma senhora daquelas, em pleno Passeio Público, uma moça que há muito deixou de ser moça, e nunca chegou a ser bela, mas convenhamos: não é de beleza que ele anda precisando, é de sangue.

Não é de beleza que ele anda precisando, é de sangue

A sorte está lançada, decreta o espadachim, e pronto, ele sorri de volta, o contato foi feito. As carências, vocês sabem, são combustíveis, e o fazem sentir-se acalorado, por dentro e por fora. O coração do espadachim se acende, mas a aliança queima em seu dedo de pai. Ele sabe que é entre dois sorrisos que se estende a ponte móvel dos primeiros beijos, uma travessia só de ida. Levemente tocado, se distrai, dá início a uma viagem delirante e por isso não escuta o guincho infantil, familiar, que vem do mundo real: defenda-se!

É o príncipe que o ataca à traição, também munido de espada, uma arma igual à paterna, só que luminosa, as baterias cheias. Ferido no pescoço, o pai camufla sua raiva. Após tantos anos, uma mulher sorriu para ele, não é hora de explodir, mas de voltar no tempo, não estrague tudo, você também tem o direito de brincar, ainda não morreu, é só um menino crescido.

O espadachim se ergue. Confere ao próprio corpo uma estrutura de herói olímpico, um estro mitológico, uma nudez talhada em mármore e exposta à apreciação de toda a fauna do Passeio. Espada em riste, não mais deprimido, parte para cima do filho: em guarda!

A criança, todavia, não quer saber de pompas, para o inferno a ética da esgrima, seu lance é bater pesado, decapitar o rei, e por isso massacra o pai, e o castiga nas canelas, nas coxas, nas costelas. O espadachim não revida, e nem pode, a luta seria desproporcional, e então aguenta firme. Só lhe resta fantasiar, render-se a devaneios filicidas, avançar em sonhos contra o príncipe que o descoroará, derrubá-lo de costas na areia e perguntar, a lâmina contra sua garganta: pronto para morrer, vilãozinho?

Não, ninguém está pronto, tampouco para viver. Por isso, entre uma e outra pancada, o espadachim sonda a mulher que lhe sorria ao debulhar as flores. Já era: ele a perdeu para uma múmia de 5 mil anos, que a ela ofertou um flácido pacotinho de amendoim doce. Queria sangue? Pois sangre, tolo espadachim, sangre, embora bravamente.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]