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Quando não é o neném, são os papagaios da Amintas. Mal amanhece, já me acordam. Ainda dormindo, eu os ouço gritando papai, papai, empoleirados na antena do prédio em frente. Levanto, abro a cortina e lá estão eles, macho e fêmea, um casal de papagaios-verdadeiros na neblina, do outro lado da rua. Ou melhor, deles, só consigo ver as sombras circunspectas, de ponta-cabeça, e é a elas que dirijo o meu primeiro bom-dia: olá, fantasmas de fronte azulada.

Pontuais, chegam pouco antes das sete e ficam até as sete e meia. Só aos domingos se permitem acordar mais tarde, ou mesmo faltar ao nosso encontro. Não é piada. Só posso contar com sua companhia de segunda a sábado. No sétimo dia, descansam de seus trabalhos secretos, inapreensíveis para nós, que os julgamos sobretudo ornamentais, considerando isso não apenas uma utilidade, mas um destino. Os papagaios seriam parte da decoração do nosso mundo.

E é por isso que o papagaio do lar é um baralho que nunca se deslacra, um pássaro engavetado

Errado. O papagaio não é esta figura naturalmente alegre, sempre disposta a estrelar as chanchadas humanas. Nada disso. Ele é o avesso da anedota, uma criatura contemplativa, séria e elegante, apesar do nervosismo de seu voo, revelador, talvez, de uma vontade subconsciente de fugir da própria fama.

Acordar com os papagaios da Amintas me fez entender que eles jamais se vestiram de verde por exibicionismo. Nós, ao excluirmos a selva de nossa paleta, é que os pusemos em evidência. Assim, o papagaio solto é um recado que nos manda a natureza, esta entidade irreverente, que de mãe não tem nada. E o que ela nos diz é: “Estejam prontos para a terrível manhã de sua inadequação”.

Há dias, bem cedo, em que abro a cortina, alertado pelo chamado das aves, papai, papai, e descubro que o casal trouxe amigos para papear. Já contei oito indivíduos num só bando. Entregam-se a intensas coreografias aéreas, sobem e descem em espiral sobre o cruzamento da Faivre com a Amintas. A dança revela o colorido de suas asas azuis, vermelhas e amarelas, leque que raramente vemos aberto, e até mesmo desconhecemos, pois voar não é um recurso desejável às coisas que amamos e mantemos conosco.

E é por isso que o papagaio do lar é um baralho que nunca se deslacra, um pássaro engavetado. Nasceu para decorar não só os nossos ombros, mas também a letra e a melodia de certos hinos, patrióticos ou futebolísticos. Dele se cobra a reprodução de nossas paixões, a imitação de nossas gracinhas. Mas o papagaio não quer ser um mero dispositivo de repetição, um escaninho de plumas onde guardamos a cópia de nossos amores. O papagaio quer o céu.

Na infância, lembro que tive meus periquitos australianos, a quem eu proibia o voo, e os amava de uma forma pura, que hoje me escapa. Mas foi com eles que aprendi que o amor pode ser um sentimento excessivamente tolerante, capaz de aturar grandes violências e mutilações. E é isto que estes papagaios aqui, da Amintas, continuam me ensinando: que eles não sentem necessidade alguma de nos amar de volta, não quando vivem assim, soltos.

Para eles, aliás, decerto sou eu o adorno vivo, o manequim descabelado. Este bonequinho de olheiras roxas que surge à janela sempre que ouve um grito de liberdade.

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