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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Estou em débito com a tradição literária brasileira. Devo a ela três ou quatro crônicas de passarinho. Sim, os textos estão aqui, sobrevoando meu teclado. Um episódio de sabiá, outro de bem-te-vi – quem se interessa? No meu baralho, o que não falta é figura emplumada, mas, sei lá, nunca as descarto, tenho vergonha. Todo escritor, embora não o admita, cultiva o seu par de ambições shakespearianas, e uma delas é emprestar a qualquer queda de pardal um caráter mítico, uma especial providência. É certo que um cronista deva ser afiado em truques dessa natureza, mas, antes de soltar meus pobres curiós na ribalta, prefiro esperar seu canto encorpar na gaiola. Por isso, para o show de hoje, convoquei um astro experiente, já bastante acostumado à exposição espetacular de suas fragilidades.

Vocês decerto o conhecem. Toparam com ele no Passeio Público, onde mora, ou em dois versinhos de um poema mais ou menos recente de Dalton Trevisan, que o comparou ao "albatroz no barquinho de Baudelaire". Pois na semana passada fui vê-lo, coisa que faço mês sim, mês não, e tomei um susto: não o encontrei no cercado de costume. O céu trovejou, um biarticulado rugiu em sua canaleta, duas corujas piaram ao longe e eu imaginei o pior: o pelicano do Passeio enfim morto, sua carcaça nas mãos do taxidermista. Mas não, não somente o pelicano, todos os pássaros do cercado haviam sumido. O ambiente era de reforma. O chão estava enlameado, a grama arrancada. Consultei o pipoqueiro mais próximo, e ele, pouco afeito a esclarecimentos, me mandou consultar a administração. Lá, fui atendido por uma mulher gentil, de guarda-pó branco. Pois não?

– Tenho uma curiosidade em relação ao pelicano.

Imediatamente, percebi na­­quela frase um grão de loucura difícil de relevar. Pode acontecer com qualquer um de nós: levamos uma vida normal, trabalhamos, casamos, temos filhos e, um dia, acordamos, compramos pão e vamos ao Passeio Público, de mochila e guarda-chuva, fazer perguntas sobre o pelicano. A mulher de guarda-pó, no entanto, me tratou como a um homem lúcido. Pois não?

– Qual o nome dele, por gentileza?

Sim, me dei conta de que não sabia o nome do pelicano, apenas supunha que fosse macho.

– Billy – sorriu a mulher.

Billy, o pelicano de Curitiba. A criatura mais deslocada da Terra. Suas asas sofreram amputações discretas que, se não o afetam esteticamente, o impedem de levantar voo e conhecer a cidade onde vive há uma década. Imaginei Billy pousado numa torre da catedral, entre a cruz, os relógios e a rosácea, os olhos na Serra do Mar, por sobre as araucárias da Tiradentes, e não quis perguntar mais nada. Onde ele nasceu, já viu o oceano, veio da Austrália ou do Vietnã, que idade tem? Melhor deixar quieto e visitá-lo, só isso.

Encontrei Billy temporariamente acomodado entre os flamingos. Parecia mimetizar os novos colegas, pois tinha assumido um leve tom rosado. Bastaram cinco minutos com ele para uma mulher me abordar. Bicho lindo, ela disse, e concordei. Ela quis saber que pássaro era aquele, e respondi que era um pelicano. Seu nome era Billy, disse eu, e o dela era Betty, me disse a mulher. Perguntou se eu não poderia tirar uma foto sua com a ave ao fundo, e me passou um celularzinho vermelho. Armou uma pose sensual, escorando seus 40 anos contra a cerca de aço do viveiro. Lá atrás, Billy coçava as penas da cauda com o bico imenso. Tomei distância e enquadrei a cena, tentando imaginá-la de fora. Eu, Betty e Billy numa mesma reta. Os três no mesmo barco. Baudelaire no leme.

Atenção, eu disse. Clique.

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