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É comum me perguntarem o quanto de verdade há nas histórias que escrevo. Respondo com meias mentiras: não sei, não importa, ninguém sabe. Às vezes me chamam de exagerado ou mistificador, mas o que posso fazer, senão me agarrar a algum tipo transcendental de jurisprudência?

Acusado, me defendo com um punhado de argumentos literários, a maioria roubada de outros cronistas. Uma vez, Ignácio de Loyola Brandão, a quem sempre fazem perguntas semelhantes, me disse que a memória também é ficcionista, e que a crônica, sem ser falsa, tem permissão para imaginar. Colocações perfeitas, que ilustrarei com duas histórias curtas e, até certo ponto, reais.

A primeira delas é antiga, de quando eu ainda era repórter da Gazeta do Povo. Nos arredores da redação, vivia um mendigo famoso por passar a maior parte de seu tempo adormecido sob as marquises da José Loureiro. Pouca gente o via na vertical, ou mesmo acordado. Era como um cadáver que, a cada manhã, alguém furtivamente mudasse de lugar, durante a madrugada.

Um dia, ele sumiu, sem deixar vestígios. E demorou meses para reaparecer, muito abatido, na Praça Carlos Gomes. Arrastava a perna direita e parecia meio metro menor. Quando lhe perguntavam onde estivera, ele contava que, em sonhos, tinha se metido numa briga feia com um anjo de Deus. A luta teria durado uma eternidade, e ele jurava estar levando a melhor, até que a criatura, reconhecendo que não o venceria sem recorrer a algum sortilégio, tocou a coxa do rival e deslocou seu fêmur.

A segunda história envolve outro mendigo, e se passou recentemente, em Guaratuba. Um homem moço, mas já envelhecido, parava todas as tardes em frente à vitrine de uma loja de maiôs. Ali se deixava ficar por meia hora, enfeitiçado pelo pôster, em tamanho natural, de uma linda modelo loura em trajes de banho.

Boquiaberto, o rapaz tocava os cabelos da imagem com os dedos sujos, tateantes, movido por uma devoção tensa e amedrontadora. Ganhou fama de tarado, e sua perversão provocava na gente uma reação ambígua, que oscilava entre o temor e a comicidade.

A esta altura, sei que muitos leitores podem dar de ombros: e daí? Não nos interessam tais personagens, nem suas vidas e identidades. Pode ser. Mas, apesar disso, esses homens se tornaram populares, e justamente porque ninguém os conhecia.

O primeiro, por exemplo, um dia me revelou, num balcão de pastelaria, a verdadeira causa de seu aleijão. Muito lúcido, contou jamais ter lutado, ou mesmo sonhado, com qualquer coisa angelical. Pelo contrário. Certa noite, tendo apanhado de um rapaz que conheceu — e amou — na rua, envergonhou-se da surra e, exausto de tanto fracassar, preferiu criar, para si, uma lenda. Velho leitor da Bíblia, frequentador de cultos, reinventou o episódio do encontro de Jacó com o anjo no deserto, e se pôs no papel do protagonista. Na falta de amor, foi buscar na loucura alguma glória.

Já o segundo homem acabou interpelado por um de meus vizinhos de praia, cansado das especulações que se faziam sobre a natureza de seus desejos. Queríamos saber se o infeliz estava de fato apaixonado pela mulher de maiô, mas o mendigo, surpreso, nos desiludiu.

A loura na foto, disse ele, era sua mãe. Morta dez anos antes, de vez em quando ela ainda o visitava sob a forma de um anjo dourado. Reeditada, aquela história de amor filial se espalhou como verídica, e transformou o tarado em bom moço.

Cada caso, aqui, tem duas versões, nenhuma verificável. E que diferença faria saber quem, entre nós, é o mais mentiroso? Duvidar do cronista é aceitável; mas, aos anjos, é sempre bom dar algum crédito.

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