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Vi um milagreiro nas Arcadas, oferecendo seus serviços ao povo que saía da Monsenhor Celso. Por ali, vocês sabem, há quem alugue o corpo; outros distribuem revistas religiosas editadas em diversas línguas. Como toda aquela gente, o milagreiro também era um comerciante informal de promessas e esperanças. Mesmo assim, quando me estendeu a mão ossuda, pedindo 30 segundos da minha tarde, eu não parei. Apenas ouvi que me perguntava:

Todo aquele território entre a Praça Tiradentes e a Generoso Marques era um jardim de ingenuidades

“Irmão, vai um milagre?”

Supervalorizando o meu tempo, nem respondi. Não que aquilo não me interessasse. Interessava. Mas deixei passar. Nem assuntei o preço dos milagres que ele vendia — ou quem sabe os desse de graça. Da natureza de seus prodígios, tampouco me informei. Toquei em frente. Eu voltava para casa após uma reunião de trabalho, e sempre acreditei que voltar para casa é uma espécie feliz e rotineira de milagre, um paradoxo mágico a se renovar diariamente, jamais perdendo a força de nos emocionar. Eu já estava, portanto, bem servido de milagres. Ou não? Como saber se eu voltaria mesmo a ver meu apartamento?

O milagreiro era um menino de paletó. Falo menino, mas não era bem isso. Ele tinha uns 20 anos. A sobriedade de sua roupa é que, por contraste, o infantilizava. Aquelas ombreiras largas certamente não suportariam o peso do planeta, mas já serviam de poleiro a vários monstros de estimação. E talvez fossem eles mesmos, amontoados ali, que espantassem toda a freguesia do menino. Porque eu não era o único a me desviar do milagreiro, é claro. Ninguém lhe dava a menor confiança.

E nem era uma questão de ceticismo. Não estávamos, de jeito nenhum, entre céticos. Todo aquele território entre a Praça Tiradentes e a Generoso Marques era um jardim de ingenuidades. Os inocentes flanavam por ali como borboletas, soprados pela brisa do acaso. Nossa ignorância das coisas, ao contrário do que dizem, é um fardo leve, bem mais leve que o ar. Qualquer vento já nos leva de arrasto, desancorados.

À beira da Fonte Maria Lata d’Água, as moças voejavam feito fadinhas, jogando sobre nós o pó de suas belezas, e não lhes faltava a atenção masculina. Ao redor dos estandes cristãos, alternavam-se as rodas de leitores. Um grupo simpático de haitianos folheava panfletos sobre o fim do mundo, atendidos por senhoras doces e prestimosas. E mesmo as ciganas diante do Paço, com suas antigas estratégias de combate, monossilábicas mas determinadas, arrebanhavam a clientela de costume, e em excelente quantidade.

Talvez a tradição por trás delas — ciganas, fadas ou religiosas — fosse o elemento extra a lhes garantir algum sucesso comercial. Talvez a ideia de corporação ou de comunidade a que pareciam atreladas acalmasse o povo em relação à segurança daquelas velhas transações. Elas eram Deus, e eram também o amor, o sexo, a sorte, a grana, a chance de mudar e ser amado, de amar e salvar-se.

E o milagreiro não contava com nada disso. Representava o fantasma de si próprio, não estava à frente de nada, acima ou abaixo de ninguém. Sua solidão, de tão pública e clamorosa, chegava a ser indecente, o que o aproximava, de algum modo, da verdadeira santidade.

Talvez eu até quisesse curar meus leprosos, ou multiplicar broas e lambaris, erradicar certas fomes e doenças. Transformar em ouro todo o petit-pavé de Curitiba. Tornar leite, mel e Éden as águas e várzeas do Rio Belém. Mas não, não parei para ouvir o milagreiro, não gastei com ele uma só palavra. E talvez fosse justamente essa moeda gasta, um sim, a única coisa que ele me pedisse, em troca de todos os mortos que eu, egoísta, sonhasse em ressuscitar.

Mas não.

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