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luís henrique pellanda

Não demore

Nosso coração também tem uma função calculadora

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Quando é dia de novena do Perpétuo Socorro, os chupins que pastam ao redor do santuário ficam incomodados. Batem asas e caem fora, o céu também é deles. Ao redor do templo só ficamos nós, os humanos, mastigando pipoca, pastel, milho verde, cachorro-quente. As barracas se multiplicam ao longo do muro do cemitério. Estou aqui de passagem, vocês sabem, a caminho da escola de minhas filhas, mas resolvo parar e comprar um pão caseiro. Homem simples, fraco e sem fé, o pão está na base de todos os meus desejos e tentações.

Já estou contando minhas moedas quando uma freada brusca me atrapalha. É um carro velho e amassado que estacionou na Ivo Leão, diante da Capela das Velas. Não sei a marca, só sei que é preto, feito a fumaça que cospe. A porta do passageiro se abre com um rangido de sarcófago, e por ali sai uma loura. Ela veste uma minissaia de couro marrom e uma blusinha que é quase um sutiã. Maquiagem borrada, tem cerca de 40 anos, e há uns 20 não deve ver o sol.

O pão está na base de todos os meus desejos e tentações

Nervosa, a mulher apanha uma vela e um isqueiro na bolsa. Passa em frente ao carro, sobe na calçada, e o motorista, de boné, ruge um “não demore”. Ela ruge de volta, ele late, ela uiva, ele urra, monossílabos desnecessários, tá bom, vai lá, já vou. A mulher se apressa, os passos estalantes, e invade a capela, onde os fiéis não camuflam certo eriçamento. Fazem suas contas secretas, nosso coração também tem uma função calculadora, e é ele que me leva a esquecer as moedas em minhas mãos, a fileira de pães sob o meu nariz — que mulher é esta, que homem é aquele? Prostituta, cafetão, cliente?

Ela não nos dá confiança, já esteve em ambientes mais hostis. Acende sua vela, fecha os olhos e reza, pede uma graça, ou quem sabe aproveite a penumbra para sentir-se de novo em casa, na noite luzidia de sua alma, ou então para respirar um pouco, dar as costas ao carro de onde veio.

Atrás do volante, o motorista põe na boca um cigarro, mas lembra que o isqueiro não está ali, e aquilo o faz socar o painel do carro. Ele apanha o celular e corre os dedos por seu espelho negro, afunda na luz das conexões, nem percebe que a loura já retorna para ele, ela não demorou, foi obediente, mas está destruída. Ela chora alto, e seu choro é um alarme que o iça das profundezas da tecnologia. Ele teme uma queda, precisa acudi-la, salta do carro e o sarcófago volta a gemer, como se também rezasse.

Os dois se abraçam, amorosamente, e são anos, décadas de vida comum abraçadas, e concluo que aqueles dois podem ser amantes, amigos, parentes, irmãos, qual a diferença? Ele a abraça como se nunca a tivesse magoado, e ela se deixa abraçar como se jamais houvesse conhecido mágoas. Ele a ampara até o carro, que mais uma vez grita ao ser aberto, e só então noto, no banco de trás, o silêncio de uma cadeirinha de bebê vazia.

O carro parte devagar. Eu compro o pão. Na capela, investigo, entre tantas, a vela daquela mulher. Procuro algo que a diferencie das outras, mas não. A mesma cor, a mesma cera, derretendo aos poucos. Talvez sua chama brilhe com uma intensidade peculiar. Nada. Quando apagar, logo mais, apagará como qualquer outra.

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