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Ele se materializou aqui na minha rua, não se sabe quando, sob as marquises da Ébano Pereira. É um colchonete fino, enlameado, de cinco dedos de espessura. Impossível desvendar a estampa debaixo daquela sujeira. Flores ou pássaros, sóis ou luas, tanto faz. Quem se importa com a flora, a fauna ou o mapa celeste reproduzido no colchãozinho? Os astros do espetáculo estão sobre ele, um menino e uma menina, tão novos e já tão remotos, só que ainda vivos, um dentro do outro, num abraço sonolento e sem fim.

Vivem e se bastam sobre o colchonete ordinário. Não vi quem o arrastou para cá, se ele ou ela, ou se ambos o vieram cavalgando pelos ares, feito um tapete mágico. Pior é que o menino tem mesmo um jeito de herói das mil e uma noites: moreno, as íris negras, o bigode ralo ensaiando roscas e revoluções, os primeiros pelos da costeleta lembrando arabescos. Ele mantém arregaçadas as calças do pijama, o tecido estufado nas coxas, e veste uma regata pequena, insuficiente, o umbigo virando-se do avesso na barriga magra.

Já a menina, sempre deitada de lado, nunca abre os olhos, nem quando acordada. É como se vivesse presa a uma onda obcecante de prazer, entre o clímax e a exaustão, escrava do enlevo a que se submete em praça pública, sob o sol do meio-dia ou debaixo de tempestades noturnas. Enrodilhada em seu namoradinho, amou ontem, ama hoje e amará amanhã, apesar do trânsito, da polícia e do comércio que insiste em se abrir sobre o casal.

Sim, eles se permitem amar na rua, às vezes cobertos por um edredom em fim de carreira, às vezes sem qualquer recato, expostos tanto ao tempo quanto ao nosso juízo higiênico e cruel: quem eles pensam que são para se quererem tanto, embora feios e doentes? Já me vi obrigado a saltar sobre os dois com a minha filha no colo, mas nem isso fez o menino parar de acariciar os cabelos curtos da namorada. Nem sequer descolaram as testas e os narizes.

O povo chia e os atropela a caminho das lojas e das lanchonetes do Centro. Todos temos nossas pressas e fomes, precisamos comprar mel de laranjeira, pastel de carne, anel de pedra da lua, pão de queijo, meias novas. Mas tudo acaba consumido ao som dos beijos dos amantes da Ébano, à luz natural do seu descaso.

É raro, mas também os vemos separados, ele por aí pedindo um troco, uma ajuda, um cigarro — pois assim como ninguém é feito de açúcar, ainda não nasceu quem seja de ferro. Só que quando encontramos o cara na Boca Maldita, sozinho e desperto, usando o corpo não para o sexo, mas para a socialização prática, nós o achamos horrível, repulsivo, deprimente. É que ele, sem ela, perde significados, e a súbita descoberta dessa ausência de sentido nos entristece.

Enquanto isso, a menina dorme no colchonete, quem sabe se gestando um novo membro para a equação simples de seu amor, aquele elemento que, em breve, será o terceiro vértice de um triângulo improvável? Ah, uma criança gerada na Ébano Pereira, em dezembro, a céu aberto, não sonhará para sempre com o show de fogos do Palácio Avenida?

E por mais que alguém, entre nós, acredite que ao menos a morte há de separar essa gente que a desafia, é inevitável que alguma coisa daquele idílio reste incólume sobre o petit-pavé, algo que nem a chuva nem a prefeitura serão capazes de lavar. Podemos queimar o colchonete, lançar ao espaço as suas cinzas, nódoas e memórias, e ele continuará aqui, nos convidando a deitar ou a saltá-lo.

É como ouvi o menino dizer, dia desses. Ele batia o punho contra o peito e falava ao próprio reflexo, na vitrine da joalheria:

"Vaso ruim, parceiro, aqui dentro é um vaso ruim."

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