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No Passeio Público, pare debaixo de qualquer árvore e aguarde. Em dois minutos, você terá arranjado um amigo. Não há solidão que resista a estas sombras. Como ando bem abastecido de amizades, sigo em movimento. Sorte minha, não reclamo da vida. Gosto de andar pela via de circulação compartilhada, onde tudo é fluidez. Principalmente hoje. A chuva matinal molhou a grama, e nenhum homem restou por aqui, sob os manacás. Foram zanzar entre os plátanos, em jejum, as cabeças cobertas, feito monges em mantas de flanela.

Numa curva do caminho, encontro um ovo azul. Intacto. Pouco menor que um ovo de galinha. Descansa sobre um tufo de capim. Ao vê-lo, meu impulso é olhar para cima. Os socós e as garças gazeiam alto em seus ninhos, lembrando um buzinaço. Me abaixo para avaliar melhor o ovo e, de repente, me dando conta do tamanho de sua mudez, sinto por ele uma ternura imensa.

O ovo é uma promessa que se consome a si própria, até se tornar uma realidade possível, boa ou ruim

Até me vem a fantasia de avisar a administração. Quem sabe não tentam salvá-lo, ou será que um filhote de socó-dorminhoco nem vale o esforço? Mudo de ideia, quem sou eu para intervir? O ovo azul não será salvo, prosseguirá em sua marcha para o esquecimento, fingirei que não o vi e vou embora. No entanto, continuo abaixado ao lado dele, admirando o tom azulado que forjou do nada, buscando entender o que houve com seu futuro.

Imperícia dos pais, ventania, pequenos predadores? Um gavião, um sagui, um gato doméstico? De quem a culpa? Bobagem, o ovo azul caiu, inútil saber mais. Tampouco vejo nessa fatalidade a mão moralizante do destino. Tudo é acaso. Quaisquer que tenham sido os agentes dessa queda, é certo que não derrubaram o ovo para que ele, ao morrer, acabasse protagonizando uma crônica de jornal. Afinal, o que pode dizer à humanidade um simples ovo de garça ou, vá lá, de savacu?

Penso numa ironia. A de ter descoberto o ovo azul à beira da morte, bem aqui, nesta pista por onde correm em círculo tantos atletas. Porque um ovo simboliza justamente a imortalidade, a renovação dos ciclos. Um ovo não é somente um pinto enclausurado, é também a energia que ele contém, uma narrativa capaz de durar anos, concentrada num único sinal gráfico. Não um ponto final, o oposto disso. O ovo é o amanhã numa cápsula. Nas charadas, é a casa hermeticamente fechada, sem portas ou janelas, o esconderijo perfeito, nosso porto de origem, para onde talvez queiramos voltar, mas como? Onde o acesso? Sim, o ovo é uma promessa que se consome a si própria, até se tornar uma realidade possível, boa ou ruim. É o lar ao qual não se retorna, o teto que não recebe o filho pródigo, o passado impenetrável, a saudade da inconsciência.

Me distraio demais, admito, e uma voz me desperta do transe. Sim, aconteceu, fiz uma amizade. Examino o homem que me chama. Magro, olhos fundos, cobertor preto. Se portasse uma foice, quem hesitaria em segui-lo? Ele diz: “Amigo, este ovo é teu?”

Respondo que não, e o cara me avisa, educado, que, sendo assim, o ovo passará a ser dele. Não me oponho. Ele agradece, colhe o seu butim e o guarda sob a manta. Depois se despede e desaparece entre as árvores. Se foi comer o ovo azul, ou mesmo chocá-lo, isso é só mais uma coisa, entre bilhões de outras, que jamais saberemos.

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