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Se for verdade que a fonte da Osório é o mar de Curitiba, será preciso navegá-la. Ou nadar nela, tanto faz. Viajar ao fundo das águas e voltar sem notícia alguma, tesouro nenhum, apenas a aventura do naufrágio, a experiência de se sentir anfíbio por poucos instantes, tocar o chão do oceano e descobrir que ele é mais raso que nossos medos.

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Já escrevi sobre a tentação que sempre me bate de mergulhar sem roupa no velho chafariz da praça, e também sobre a falta de coragem que, desde pequeno, me detém o salto. Mas vivo um dilema fisiológico: tenho um coração de navegador, e não as pernas, não os braços. Por isso, ao passar pelo repuxo, ignoro suas sereias de ferro e sigo adiante, orgulhoso. Fato é que elas não fazem a menor questão da minha companhia.

Outras criaturas, porém, feitas não de metal, mas de materiais menos duráveis e mais ternos, são capazes de me frear o passo. Semana passada, num de nossos últimos dias de sol no semestre, aconteceu algo semelhante. Era hora do almoço e eu vinha pela Osório, já alimentado, quando vi, às margens da água suja, uma moça acocorada.

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Não me entendam mal: não sou nenhum tarado. E a moça, reservadíssima, não tinha nem sequer a ambição da beleza. Fazia o tipo que pouco ligava — para modas, cabelos, maquiagem, acessórios. Ou talvez sua vaidade residisse justamente naquele desejo de atrair nossa atenção sem disfarçar-se de bonita, apenas se agachando na rua, feito uma doida, diante de tantos homens rudes, deseducados para a fruição das artes do despojamento.

Pois quando ela se agachou, eu desacelerei. Fingi ler uma mensagem no celular e contornei o chafariz, moroso, feito um ponteiro de relógio dissimulado, marcando não o tempo, mas a nossa urgência em perdê-lo. A moça não me notou. Parei de frente para ela e pude, enfim, descobrir o que a punha ali, de cócoras.

Tenho um coração de navegador, e não as pernas, não os braços

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Era um barquinho de papel, que as ondas do repuxo empurravam em sua direção. Tomei um susto, não imaginei que estivesse brincando, qual seria a sua idade? E só então entendi que aquela moça era pouco mais que uma criança, e que a perspectiva bruta dos homens ao seu redor é que a tinha envelhecido antes da hora.

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O barco logo chegou às suas mãos. Eu não saberia dizer quem o construiu e lançou às águas, mas posso afirmar que aquela menina cultivava, sim, uma pose de comandante. Içando a embarcação pela vela, salvou-a dos perigos daquele marzinho revolto e, num ímpeto, levantou-se, me fazendo acreditar, com aquele movimento vigoroso de subida, que ela própria também crescia, assim como seu corpo e sua autoridade.

De pé, era incrivelmente alta, bem mais que qualquer um de nós, uma mulher rivalizando com os jerivás da praça. Era outra pessoa, ou talvez a mesma, só que com outra produção, outra estrutura, outros olhos. Com eles, agora bem maquiados, examinava o barquinho entre os anéis dos dedos, as longas unhas pintadas, como se passasse em revista uma tripulação microscópica.

Eu a espiava, quieto, imóvel, mas devo ter me descuidado, pois ela flagrou meu interesse. Irritada, me disse: “Odeio quem suja o chão, a praça, a cidade”. Concordei, constrangido, ao que ela emendou: “Alguém jogou isto na água”.

Determinada, os saltos estalando no petit-pavé, foi até a lixeira mais próxima. Mas não atirou lá dentro o barquinho. Com uma ternura inesperada, equilibrou-o na borda do cesto de madeira, à beira do abismo. Largou aos caprichos do vento a decisão de afundá-lo. Depois partiu, e as tirivas gritavam entre os seus cabelos. Ela não olhou para trás, mas sei que, de longe, ainda ouvia, como eu, o chamado de algum outro oceano, menos raso que os deste mundo.