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Juro que não queria mais falar de meus vizinhos urubus. Mas a história que contei aqui, na semana passada, repercutiu demais. Recebi mensagens pesarosas de leitores de todo o Brasil, espantados com as próprias reações. Nunca na vida tinham concebido o absurdo desta possibilidade: chorar por um urubu. Pois é, acontece, sim, qual o problema? E uma senhora, vejam só, foi além: chegou a acender uma vela na intenção do pássaro perdido.

A mulher não quis se identificar, encabulada por haver solicitado proteção divina a um bicho agourento. Não se deve usar a cera e o fogo à toa, escreveu, o tempo de um santo já é tão curto, como é que ele vai encontrar um filhote de urubu numa cidade grande? Mesmo assim, senhora de fibra, resolveu arriscar. Foi à igreja de seu bairro, acendeu a velinha, ajoelhou-se. Rezou pela intervenção de São Bento, que, segundo ela, era muito amigo de um bando de corvos lá na Itália. E depois me procurou, atrás de boas notícias.

Um urubu precisa de paz para compor, lá no céu, os seus versos e presságios

Bem, foi por causa dessa leitora solidária, envergonhada da própria emoção, que voltei hoje ao assunto. Ou melhor, não voltei ao assunto; ele é que voltou a mim. Porque o segundo urubuzinho da crônica, aquele que estava sumido e eu julgava morto, atropelado no cruzamento da Cruz Machado com a Ermelino, ou então anêmico num galho de tipuana, na Pracinha do Amor, voltou ao ninho. Sua mãe e seu irmão agradecem a preocupação geral e mandam avisar: a família está novamente reunida desde a manhã de quarta.

Calmos, gastaram horas em carícias bicudas, como se o amor de um pelo outro estivesse escondido entre suas penas. Depois praticaram o voo incansavelmente, nos intervalos da chuva, indo e voltando do ninho à parabólica da OAB. Pareciam mais fortes e bonitos do que antes. Onde estiveram, como fizeram para sobreviver, jamais saberemos, e isso não importa. A única notícia que quero dar é esta: está tudo bem com os urubus, podem ficar sossegados.

Por enquanto, é claro. A vida é um paraíso minado. Mas, se novos incidentes vierem atormentar estas aves, prometo não mais comentá-los aqui. Porque, assim como os leitores, também aprendi algo sobre mim com essa história. Não cheguei a chorar, confesso, mas me assustei ao perceber que estava lucrando em cima dos urubus. Me senti, aliás, um pouco como Pedro Malazarte. Alguém aí quer comprar um urubu encantado?

Na rua, no café, na praça, já há quem me pergunte: como vão seus urubus? E mesmo nossos amigos; entram aqui em casa e correm à janela da biblioteca: viemos ver os urubus. Os bichos já têm me olhado com certa desconfiança. Sabem que sou um delator de sua intimidade.

Não sei, enfim, como limpar minha barra com eles. Ou ao menos minha consciência. Sei é que fico sem graça ao vê-los assim, meio famosos sem querer, protagonizando não apenas crônicas de jornal, mas orações cristãs e pesadelos humanos. Eles não pediram isso. Vou deixá-los com a discrição que lhes cabe. Um urubu precisa de paz para compor, lá no céu, os seus versos e presságios. O urubu é um poeta refinado. E é mais que isso. Como dizia o Tom Jobim, ele é o eterno vigia de um tempo imperecível.

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