• Carregando...
 | /
| Foto: /

No ponto do Piraquara, já faz algum tempo, vi um menino de pouco mais de 10 anos ameaçar a própria mãe. Não dou os detalhes da conversa, mas a mensagem era a seguinte: se a mãe não cumprisse as determinações do filho, ele voltaria a procurar as autoridades competentes, que a fariam perder não só a guarda daquele menino em particular, mas também a de seus irmãozinhos. Cansada, a mulher apenas suspirou: “Ser mãe, quem diria, é cuidar de um presídio”.

Não sei. Impossível julgá-los, e nem conheço os antecedentes da dupla. De todo modo, não é desse caso que quero falar hoje. É de outra mãe e de outro filho, que encontrei semana passada, no mesmo ponto de ônibus, ali na Santos Andrade. Primeiro chegou à fila um homem alto e magro, no fim da juventude. Não trazia maquiagem no rosto glabro, mas seu nariz de plástico, vermelho e ordinário, já era o suficiente para que qualquer um o identificasse como um palhaço de rua. Capturei seu nome por sorte, quando uma senhora atrás de mim, bastante aborrecida, anunciou sua aparição: “Lá vem o Pelúcia”.

Em Curitiba, vocês sabem, temos vergonha de tudo, até de sangrar em público

O palhaço arrastava os pés dentro de dois coelhos felpudos e encardidos, um deles caolho. Portava uma escova de dentes infantil usada, as cerdas em péssimo estado. Vestia um pijama de moletom roxo, estampado de ossos e cachorros, e carregava nas costas uma mochila de ursinho, visivelmente pesada. Sua expressão era súplice e manhosa, mas não pude registrar o timbre de sua fala, muito baixa, confidencial.

Pedia algum favor ao povo da fila, tomando o cuidado de pular os homens. Dirigia-se somente às mulheres desacompanhadas, uma a uma, e quase ao ouvido delas, não fazendo distinção de idade ou beleza. O que sussurrava, brandindo a escova seca e ereta, sem pasta dental, eu não ouvi e nem tenho o direito de inventar, cada um imagine o que quiser. Mas, pela reação das ouvintes, acredito que fosse matéria indecente, chata ou, no mínimo, absurda.

Algumas arregalavam os olhos ao escutá-lo. Outras fingiam que o palhaço não existia, os braços cruzados, o olhar desviante. Só uma riu, nervosa, e a primeira da fila, abordada por último, foi quem finalmente se enfezou, talvez com justiça, metendo a boca no Pelúcia: “Sai pra lá, vagabundo, não teve mãe, não?”

O palhaço acusou o golpe. Desmontou o personagem e fugiu dali ferido, como se sua orfandade de repente sangrasse (em Curitiba, vocês sabem, temos vergonha de tudo, até de sangrar em público). Cinco minutos depois, no entanto, o Pelúcia já voltava de seu exílio – ou de suas coxias, melhor dizendo –, aparentemente recuperado, mas bem diferente de quando partiu.

Era outra pessoa. Usando a mochila de ursinho no ombro direito, feito bolsa feminina, equilibrava uma peruca grisalha na cabeça, os cabelos presos num coque. Por cima do pijama, jogou um vestido sóbrio, barato, mas aliviou os pés do calor das pantufas, preferindo, agora, um par de chinelos de dedo. Parou diante das mulheres na fila do Piraquara e, depois de cumprimentá-las com um bom-dia, Jesus seja louvado, disse a todas, com muita clareza e dignidade: “Por favor, desculpem o meu filho, ele é um bom menino, eu garanto”.

Foi automático. Na hora, lembrei de uma frase famosa de Norman Bates: “O melhor amigo de um menino é a sua mãe”. E pensei no quanto um acúmulo de funções pode ser, a um só tempo, libertador e massacrante. Para o Palhaço Pelúcia, que interpretava o seu próprio carcereiro, o teatro é mesmo uma estratégia de sobrevivência. Seu lar é a rua, seu palco é a praça. Seu presídio, nossa cidade. Em Curitiba, somos sua plateia, seus colegas de cena, seus vizinhos de cela.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]