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Faz alguns dias, persegui uma menininha pelas ruas do Centro. Ela saiu de um prédio e, sorrindo, parou diante de mim. Me mandou um beijo e disparou pela calçada. Hesitei, olhei em volta, ninguém. Dez segundos e apareceu uma senhora, perguntando por ela. Apontei para a esquina, onde já se perdiam de vista duas longas marias-chiquinhas. A mulher gelou, quis correr atrás da criança, mas era como se afundasse na neve. Tudo que pôde fazer foi balbuciar palavras quebradiças, que rolaram de sua boca feito pedregulhos, não encontrando nenhum outro destino que não fosse o chão.

Tomei aquilo como um pedido de socorro e, arrependido de minha capitulação inicial, parti em disparada, quase heroico. Achei que capturar a menininha seria fácil, mas, ao virar a esquina, vi que ela já ia pelo meio da quadra. Impossível correr tão rápido aos três anos, o vento a devia estar carregando, tão miúda. Saltitava no meio-fio, o passo caprino da Chapeuzinho Vermelho, flertando com o trânsito pesado. Ao pisar no asfalto, se viu entre mil lobos. Um automóvel cantou pneus, outros frearam, houve um buzinaço, e a fugitiva voltou à calçada, ainda correndo, sem dar sinal de susto.

Apenas abriam alas e a deixavam passar, a princesinha diabólica, e ainda me olhavam meio enojados

Vi que não estava em minhas mãos evitar uma tragédia. Vi a menina morta, e minhas próprias filhas me escapando, o futuro somente uma sucessão de saudades e atropelamentos, culpa da minha indecisão assassina. Apelei para a garganta — um grito é mais rápido que um corpo, as palavras correm mais que as pernas, embora estas nos pesem menos — e gritei oi, alguém segure essa menina, segurem. Mas não. Apenas abriam alas e a deixavam passar, a princesinha diabólica, e ainda me olhavam meio enojados, meio pasmos, como quem se admira de ver assim, à luz do dia, a desfaçatez de um tarado, um pai relapso, um tio idiota.

Aquilo me irritou, e decidi intercalar os pedidos de ajuda com diversos palavrões genéricos, capazes de ofender a todos e a ninguém especialmente, e notei que, atrás de mim, a voz da senhora também se elevava, distante, invocando anjos, santos ou virgens, os que chegassem primeiro, e soube que era comigo, que aquela mulher pedia a Deus que me desse coxas fortes, pulmões olímpicos e um coração passível de bombear sangue através do ar e do verbo.

Rugi, saltei uma floreira, voei. Aquela menina devia ser surda, ou então a cidade é que tinha ensurdecido, ou talvez eu sonhasse, e a pequena fugitiva fosse só a representação de meus desejos mais inalcançáveis, infantis.

Ainda bem que um cara, lá na frente, enfim reagiu a meus chamados, me livrando daquele pesadelo. Curvando-se e abrindo os braços, bloqueou a passagem da menina. Ao vê-lo, ela apaziguou-se. Caminhou até o homem. Abraçou-o. Foi erguida e lançada para cima. Exausta, a senhora se arrastou até eles. E acabou abraçada também.

Dei meia-volta e respirei fundo. Da porta de suas lojas, o povo me estudava com o interesse levemente sociológico que desenvolvemos por aqueles que, entre nós, protagonizam os grandes vexames. Mas não, eu não ligava. De algum modo, sei lá qual, sentia ter feito a coisa certa. Era como se eu houvesse pastoreado um reencontro.

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