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Escrevi, certa vez, que o mar é uma régua de medir horizontes, e é por isso que, volta e meia, venho a Guaratuba. Para me certificar de que ainda temos um futuro, de que ainda nos restou algum espaço de fuga. Havendo o mar, sempre haverá a possibilidade de, ao menos por uma ou duas horas, virarmos as costas àquilo que o amável Ivan Angelo, numa crônica feliz, chamou de "nossas construções bizarras". Numa praia, é isto o que tento fazer: traçar um plano de escape, uma fantasia de evasão.

Às vezes, funciona. Mas só às vezes. Com o calçadão em obras, por exemplo, é impossível se distrair do chão. Cada passo exige de nós um acompanhamento visual rigoroso, e o oceano, coitado, se torna um palco secundário, brilhando apenas na periferia de nosso olhar. É essa, aliás, sua situação atual. O mar daqui me fascina menos que os buracos na beira-mar, a lama, as pedras empilhadas pelo caminho, as trincheiras abertas na areia e, lá no fundo, os pedaços de concreto misturados ao lixo.

Paciência, é a pré-temporada, está tudo mais ou menos bem. Constato com alegria que os coqueiros estão crescendo. Vingaram, embora pareçam atarracados demais, tão tímidos em sua produção de cocos. É o nosso clima, ou algum ressentimento nosso contra tudo que é tropical.

Em todo caso, os coqueiros estão aí, eretos e férteis, dando sombra a qualquer um que deles se aproxime, uma sombra limpa, honesta e gratuita, o que, para uma árvore do calor, já é um sucesso. A cada cinco metros, no entanto, pinga de suas folhas uma taturana gorda, bem alimentada, e isso é preocupante. Espero não se tratar de uma praga, bem às portas do verão.

Sim, eu me preocupo, Deus nos livre da vergonha dos coqueiros pelados. Como tantos curitibanos, fui criado nestas praias, e gostaria de poder dizer que as conheço plenamente, como quem conhece as depressões, os defeitos e os rangidos de uma cama em que vem dormindo desde criança. Mas não, este é um lugar que se reforma sem parar, que se reestrutura constantemente a partir de suas bagunças e tragédias, e sempre nos surpreende. Por isso mantemos com a cidade uma relação sentimental tão intensa, inexplicável; é como se nos afeiçoássemos ao drama de mais um paraíso que se arruína por nós.

É um lugar de surpresas, sim. Dia desses, manhã abafada, eu caminhava da Praia Central até as tendas de peixe, as matilhas de guapecas descansando à sombra dos banheiros públicos grafitados. Sentei num tijolo, perto dos barcos de pesca, observando a chegada de um imenso balaio de peixes pequenos, trazido ao asfalto com dificuldade por dois pescadores. Depois abri uma água mineral e me dediquei a medir o horizonte.

Não demorou a me abordar um doido encasacado, barbudo, que me propôs uma questão. Por muitos anos, disse o sujeito, ele perguntou a todos que encontrava: "Se você pudesse escolher, como gostaria de morrer?" Uma pergunta simples, como se vê. Só que o excesso de respostas fáceis que recebeu o fez perceber que aquela era a "pergunta errada". E a "pergunta certa" talvez fosse: "Se você pudesse escolher, como gostaria de ser salvo?"

Prometi pensar a respeito e elaborar uma resposta decente. Era quase meio-dia e voltei para casa, faminto. Na avenida principal, avistei uma aglomeração, perto do meu prédio. Um homem havia acabado de balear outro homem diante da lotérica, e um deles sangrava no meio-fio.

Perdi a fome, mas não a curiosidade. Como ainda não sei o que responder ao cara da praia, repasso sua pergunta a vocês. É a pergunta de um doido. Mas tentar respondê-la pode ser um exercício de salvação.

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