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| Foto: Benett/

Desembarquei na Parnaíba era quase meia-noite. No início da viagem ainda consegui vislumbrar, na beira da estrada, o fantasma comprido dos carnaubais. Me disseram que a carnaúba está para o Piauí assim como a araucária estava para o Paraná. Pode ser. Sei é que foi bonito ver tanta palmeira no lusco-fusco. Porque aí escureceu e fim. Só restou o breu da caatinga e, lá longe, um e outro fogo de queimada. Isso e o céu mais estrelado que já vi.

Desci do ônibus em todas as rodoviárias onde paramos, só para olhar o céu. Em Curitiba, as estrelas já vão se extinguindo; em Campo Maior, Piripiri, Piracuruca e Cocal, não. Nesses lugares, o universo ainda é um teto de mina.

Mas, como eu disse, desembarquei tarde. Da Parnaíba, fui a Luís Correia, onde me hospedei. Dormi ao som do ar-condicionado e acordei com a passarada, em plena Praia do Barro Preto. Abri a janela e foi um susto, o casamento da luz e da paisagem perfeitas. É sempre um espanto acordar num sítio luminoso em que se chegou pela primeira vez num começo de madrugada.

Os seres mais belos e de movimentos mais fluidos devem ter firmado, na natureza, algum pacto de respeito mútuo

Caminhei até o restaurante. No bufê, colhi um pãozinho e um naco de bolo de goma. Deixei a comida numa mesa próxima e levantei buscar um café preto. Foi quando um bando de pardais descuidistas atacou meu prato. Perda total.

Comi cercado pelos passarinhos. Havia pardais no espaldar da minha cadeira e sobre o tampo da mesa. Um funcionário do hotel batia palmas ao meu redor, pulando e dando risada, atônito por se descobrir, àquela altura da vida, desempenhando a função de espantalho.

Os pássaros só perderam cartaz quando duas bailarinas entraram no salão. Habituadas a se mover e respirar diante de plateias, andaram até o bufê sem olhar para ninguém, cada passo uma coreografia simples, de improviso e elegância. Era como se dançassem inclusive para os pardais, que, incrivelmente, não se aproximaram delas. Pouparam a mesa das moças, o que me fez pensar que os seres mais belos e de movimentos mais fluidos devem ter firmado, na natureza, algum pacto de respeito mútuo. Mas também pensei, admito, na ironia de se fazer da própria beleza um espantalho.

Terminada a refeição, ainda dava para ir à praia. Eu só começaria a trabalhar dali a algumas horas. Cruzei a rodovia que me separava do oceano, impressionado com a fileira de árvores ali, entortadas por décadas de ventania ininterrupta. No Delta do Parnaíba o vento é o grande legislador. E é por ordem dele que as dunas atrás do hotel estão se retirando para o sertão, em busca, quem sabe, de uma ampulheta por onde escoar.

Na praia, uma velha constatação: há um mar verde, sim, capaz de cegar um curitibano afeito ao cinza das águas de Guaratuba. Uma placa proibia o tráfego de veículos motorizados, pois estávamos num local de desova de tartarugas. Umas 30 crianças de Nossa Senhora dos Remédios brincavam por lá, correndo sem qualquer preocupação ecológica. Só eu é que me pus a passear como se pisasse em ovos raríssimos. Já é meu costume.

Carregado de areia, o vento me fez entrar no mar. Por sorte, antes de mergulhar, descobri algo no bolso da minha bermuda. Era o amuleto que minha filha mais velha sempre esconde em minha mala, na véspera de uma viagem. Um coraçãozinho de isopor coberto de purpurina vermelha, brilhante como a noite sobre os carnaubais. Diz a menina que é para me proteger do mal, e que funciona como os sapatinhos de Dorothy Gale. Quando eu quiser voltar para casa, basta pensar nele.

Pensei, e logo me vi de volta. Não em casa, mas no hotel. É preciso trabalhar, sim, viajar, conhecer as coisas do mundo, aprender suas senhas e segredos e, ao fim de tudo, se possível, preservar o coração para os acidentes da saudade e o milagre dos retornos.

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