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Manhã de calor, batendo os 30 graus. Na Santos Andrade, um rapaz procura uma sombra desocupada. Sem pressa, se acomoda debaixo de um pequeno butiazeiro, tira os tênis e as meias, enrolando uma na outra, e larga o corpo sobre a grama seca. Agora é só esperar a chegada do sono para, docemente, desperdiçar mais um dia.

É o que ele tenta fazer, as costas no chão, mãos cruzadas na barriga. Dobra os joelhos, abre os braços e permanece assim, um boneco imóvel, delgado e sem dono, a calça justa marcando a curva sensual das panturrilhas, as coxas magras e musculosas.

Mas algumas abelhas voejam dois, três metros acima de seu rosto, entre os cachos floridos do butiazeiro, numa mistura feliz de marrom, verde e amarelo, e atrapalham o descanso do rapaz. Não que ele tema as abelhas, pelo contrário, acho até que as admira, está encantado. Talvez aprecie nos insetos a disciplina daquela operação conjunta e tão complexa, ou a justiça de um sistema que arranja para todos uma colocação digna, apesar de hierarquizada.

Na real, não sei, estou chutando. Apenas reinvento o rapaz diante de mim e, assim como ele, sinto sono e calor, e também repouso meu desânimo nesta praça, só que num banco, respeitavelmente, e à sombra de uma árvore que desconheço, que não me diz nada, mas acolhe a minha preguiça.

Além do mais, já tenho em que pensar. Nesta mesma manhã, recebi a notícia da morte de um parente distante. Meu pai ligou, me falou de um câncer agressivo, um velho primo não sei de que grau, uma tristeza, lembra dele? Eu disse que não, família grande, já viu. Meu pai se espantou, como não? Ele gostava tanto de você, te carregou no colo quantas vezes? Mas não, eu não lembrava.

Lembro, ou tento lembrar, do menino que fui, carregado no colo por tantos mortos de que já esqueci. E penso que aquela parte de mim também já deve estar morta, ou no mínimo sedada. Afinal, como posso ter me movido pelo mundo nos braços de outro homem sem guardar, disto, qualquer recordação? Por que a vida nos permite o luxo de desprezar certos afetos?

Fato é que estou vivo, e é preciso trabalhar. Levanto do banco e me aproximo do butiazeiro. O rapaz é mais jovem do que eu supunha, e cheira a açúcar queimado. As abelhas passeiam por seu peito liso, onde uma tatuagem malfeita cobre um seio siliconado, fresco. É uma cruz, estrangulada por duas rosas, os espinhos de uma ferindo a outra. Avalio o desenho sem constrangimento, pois o menino enfim adormeceu, e agora ressona como uma colmeia, os olhos ainda se mexendo sob as pálpebras azuis.

Ele está sonhando, sim, alheio aos ferrões que marcham sobre sua pele. E é bem possível que, neste sonho, esteja também reavendo um afeto esquecido, acessando a memória ou o colo de algum de nós, vivos ou mortos, no passado ou no futuro. Sonhar é o seu modo de fazer mel.

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