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Num canto da Pracinha do Amor, há uma jaula. Fica rente à escada que dá para a Saldanha Marinho. É dentro dela que os jardineiros guardam suas ferramentas, uma precaução compreensível contra os malucos do lugar. Melhor não deixar enxadas e facões à vista, vocês sabem. Há homens que se apaixonam fácil por tudo que é de metal e, para eles, uma lâmina nua é o sorriso de um anjo.

Não faz tanto tempo, um jardineiro também se trancava ali, com suas armas. Passava na jaula todo o horário de almoço. Adubava os canteiros, molhava a grama, arrancava o mato entre as pedras e, faminto, se engaiolava para comer. Depois, em vez de dormir, puxava um violão azul e desfiava um triste repertório sertanejo. Sua afinação não era perfeita, mas seu timbre, ardido e único, compensava qualquer defeito. Sua voz incorporava a ferrugem da gaiola de onde saía.

Era bonito ouvir o jardineiro, mas ninguém dava a mínima para ele. O povo o trespassava feito o vento entre as grades. Se seu canto causava alguma perplexidade, era aos passarinhos da praça. Livres, as aves sabiam que não se pode competir com um cantor engaiolado.

Pois esse jardineiro, é pena, sumiu há anos. Não sei onde anda, se continua vivo, ainda cantando, abraçado a seu violão azul. Mas sei que ali, bem onde ele se sentava para almoçar, encostado ao paredão da velha sinagoga, brotou, de uma rachadura no concreto, uma plantinha. Tão insignificante quanto o homem que a precedeu.

Demorei alguns dias para identificá-la, mas já posso afirmar que se trata de um tomateiro. Ele cresceu rápido. Subiu pelas grades e ganhou corpo, dominando a aridez do ambiente. Entre suas flores amarelas, já posso ver alguns tomatinhos verdes, a ramagem fina pendendo para o chão, os frutos engordando com saúde e cupidez.

Torço para que fiquem logo vermelhos. Não que eu queira colhê-los, pelo contrário – e nem poderia, pois não são meus, e nem tenho as chaves da sua jaula. Mas vê-los maduros seria, sim, um convite a uma partilha de ótimos presságios, uma colheita inusitada em plena Saldanha Marinho – e que safra farta seria a nossa. No fundo, o bom é se descobrir tentado mais pela cor dos frutos que pelo brilho dos metais.

Não, não sei quem plantou os tomates. Não conheço o novo jardineiro da pracinha, e ignoro os seus desígnios. Tampouco sei se aquele tomateiro nasceu por acaso ou se é o resultado de algum planejamento, alguma rebeldia, uma paixão particular. Mas estou certo de que alguém cuida dele, pois seus galhos mais altos estão seguros, bem amarrados às grades da jaula por grossas tiras de plástico.

O arranjo é simples e funcional, mas o que o torna mesmo notável é o fato de que o tomateiro afronta o projeto paisagístico da praça. Sabemos que ele é um impostor entre as flores ornamentais. Mas, dentre todas as plantas ao seu redor, ele é a que parece mais viva e feroz, mais à vontade em sua batalha por sol e sentido, mais completa entre as tantas fomes que a cercam.

Mas confesso não estar sendo original. Em dezembro de 1945, Rubem Braga escreveu uma crônica sobre um pé de milho que surgiu em seu jardim, desafiando o vento e o mar do Rio de Janeiro. Por causa daquele pé de milho, o cronista garantia não ser mais um sujeito medíocre, e sim um rico lavrador da Rua Júlio de Castilhos.

E é isso que gosto de pensar a respeito do homem que cuida do tomateiro da Pracinha do Amor. Fantasio tratar-se de um bom camarada, que tem grandes planos para os tomates que está produzindo, e cuja riqueza, tão vasta, possa ser preservada num lote de jornal, por um pobre cronista dito urbano, sem nenhum jeito para as roças e o romantismo.

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