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Minha filha montou uma égua chamada Chuva. Chegou de um passeio com outras crianças, semana passada, e foi essa a grande notícia. Era uma égua branca com pintas azuladas, cor de água em movimento. Eu não vi, mas posso imaginar: minha filha sobre a Chuva, cruzando o campo de malmequeres, conduzida por um tratador. Na hora fazia sol, e ela adorou o paradoxo. Até pensou na hipótese de um arco-íris. Ou no casamento de um espanhol.

Senti inveja, reconheço. Minha estreia a cavalo, na infância, passou longe da alegria. Não dou os detalhes, pois o patético dispensa minúcias. Apenas digo que montei um pangaré caramelo. Seu nome, eu nunca soube, mas afirmo que se tratava de um sábio, conhecia todas as minhas fraquezas. Odiei a experiência, me senti devassado. Petrifiquei e empacamos. Jurei jamais cavalgar outra alimária e, como desculpa, me agarrei ao argumento de que a equitação degrada os quadrúpedes.

Tudo que ela vê, ela me mostra. Olha, pai: um cara com um coelho no colo, ele tem jeito de vilão, mas as crianças vão falar com ele, acariciar o bichinho

Mas eu falava da Chuva. Enquanto minha filha a montava, eu estava em casa, com sua irmãzinha. Troquei fraldas, preparei uma sopa, lavei a louça do almoço, pendurei roupas, brinquei com cubos coloridos. E, durante a meia hora de sono do neném, tentei ler uma novela policial estrelada pelo rabino David Small. Li e reli um mesmo parágrafo por dez minutos, e apaguei no sofá.

É isso. Muita gente, hoje, me pergunta o que faço na vida: mas você só escreve? E há sempre um tom de admirada expectativa na ênfase com que costumam enfeitar este curto advérbio: só escreve? Eu garanto que não, também leio, mas por fim digo que, além de ler e escrever, cuido da casa. Minha mulher sai cedo, trabalhar, só volta à noite, e eu fico com as meninas.

Em janeiro, vocês sabem, com as escolas fechadas, o serviço doméstico dobra. Normal. Por isso, passo a recusar quase toda oferta de trabalho extra. O dinheiro some, mas é verão, sobreviveremos. Também deixo de ver os amigos e quase não saio da toca sozinho. Pareço um animal confuso, hibernando no calor.

Quando saio, é com as duas. Vamos à colônia de férias, ao parque, à padaria, ao pediatra. Uma vai ao meu lado, aos saltos, e a outra no carrinho, solfejando. Voamos cidade afora, o mundo sumindo à minha volta. Afoito, não enxergo mais nada, só a calçada, o trânsito, o relógio, o horário dos ônibus. Mas está tudo bem, pois minha filha mais velha passou a observar o mundo por mim, provisoriamente. É um acordo que firmamos.

Tudo que ela vê, ela me mostra. Olha, pai: um cara com um coelho no colo, ele tem jeito de vilão, mas as crianças vão falar com ele, acariciar o bicho. Olha, pai: esvaziaram o chafariz da praça, e os piás estão lá dentro, andando de skate. Olha, pai: o urubu comendo uma pomba bem debaixo daquela árvore, como é mesmo o nome, guaruvupu, guavupuru, guapuruvu?

Sim, durante o verão, minha filha vem me emprestando olhos e ideias. Agradeço e prometo pagar bem pelas histórias que me conta e que, ela sabe, nem precisam ser reais. Basta eu acreditar nelas. Aliás, essa cavalgada com a Chuva sob um arco-íris conjetural já lhe rendeu uma fortuna. Acabo de depositar três mil caracteres em seu cofrinho de caveira.

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