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Cena de telejornal do dia 29 de março: José Sarney conduz uma sessão solene em homenagem ao ex-senador e ex-governador Mario Covas, quando alguém se aproxima e avisa que José Alencar morreu. Sarney interrompe o discurso para comunicar o fato ao plenário. Chamou minha atenção a semelhança: Covas, que morreu em outro março, há dez anos, foi protagonista de situação muito semelhante à do ex-vice-presidente. Viveu publicamente a luta contra o câncer. O fato de que a morte de um foi anunciada durante uma homenagem ao outro é coincidência que passou despercebida, mas reúne simbolicamente os dois homens que já têm algo muito forte em comum nas suas biografias. Assim como Alencar faria, Covas manteve as atividades públicas nos intervalos entre cirurgias, trabalhava no hospital e aparecia em público sem cabelo e mais magro. A saúde física desaparecia em frente ao público. Assim como fez Alencar, que conviveu com a doença muito mais tempo, 14 anos.

Por trás da atitude dos dois parecia estar a falta de vaidade pessoal (o vaidoso não quer que o público veja sua decadência física) e a convicção de que tinham compromissos importantes a serem cumpridos. Não podiam, portanto, dar-se ao luxo de ficarem trancados em casa enquanto se tratavam. Provavelmente, ambos se beneficiaram desse desprendimento. A autopiedade consome energia e maltrata, é uma fonte de sofrimento que a própria vítima procura e na qual mergulha sabe-se lá por que – mas que é uma tentação forte. Isso todo mundo sabe.

No caso de José Alencar, ele foi muito claro sobre como se posicionava diante do sofrimento que estava enfrentando. Disse que sabia que estava recebendo um tratamento especial, que tinha acesso a muito mais recursos que a maioria dos brasileiros jamais teriam para cuidar de sua saúde. Tinha de se comportar, portanto, como um privilegiado, não como uma vítima. Estava coberto de razão: foi um privilegiado e, mesmo diante da morte, não ficaria bem agir como um coitado.

Além do mais, convenhamos, o sentimentalismo brasileiro – que faz de nós um bando de chorões que se emociona até com as lágrimas de um jogador de futebol milionário que inventa desculpas para ser gorducho – tende a gerar ondas de carinho na direção de pessoas como José Alencar, que era acessível e abnegado. Provavelmente ele sentia esse carinho em todo lugar aonde ia, dos enfermeiros do hospital Sírio Libanês aos repórteres, dos políticos da oposição aos desconhecidos que cruzavam seu caminho.

Alencar falava como um homem que sabia que era o alvo do amor de muita gente. Havia até certa alegria constante nele apesar da doença. O amor faz milagres. Não cura câncer, mas faz um homem conviver com ele e com a perspectiva da morte próxima com uma galhardia de adolescente. A galhardia vinha do fato de sentir-se especial para tanta gente. O resíduo bom das experiências de Covas e Alencar é que os dois acabaram por ajudar a desmistificar a doença – aliás, não era assim que muitos se referiam ao câncer até recentemente: "a doença?". Não tiveram essa intenção, mas provavelmente é por esses aspectos ligados a seus últimos anos de vida que serão mais lembrados.

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