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Revi A Felicidade Não se Com­­pra (It’s a Wonder­­ful Life), o filme de Frank Capra que é uma daquelas pérolas que o cinema nos dá de tempos em tempos. A abertura é genial — estrelas no céu e uma conversa entre criaturas das quais só ouvimos os no­­mes: Senhor, José e Clarence. Cla­­rence é um anjo de segunda categoria e vai receber uma missão que pode lhe render um par de asas. Sua missão é fazer Geor­­ge Bailey (interpretado por James Stuart) desistir de se matar. Geor­­ge já está na ponte, pronto para se jogar. Mas o trio celestial tem ferramentas poderosas. Clarence pede aos chefes que deem a Geor­­ge a chance de ver como seria o mundo sem ele. Aí Capra exagera: a comunidade seria totalmente diferente sem a participação de George. É que ele representa a resistência à ganância, ao individualismo.

Há outro drama que corre ao longo do filme, em segundo plano. O jovem George Bailey sabe bem o que quer e o que não quer da vida. Mas vai se enredando nas responsabilidades que vão surgindo e no amor por uma mulher e acaba por dar um rumo a sua vida diferente do que pretendia. Isso o frusta terrivelmente, mas, responsável que é, não se permite fugir. Acho que na hora em que George decide se jogar do alto da ponte, a frustração com os sonhos não realizados pesa tanto quanto a falência econômica que está prestes a enfrentar.

Frank Capra fala aqui de uma mensagem que era cara aos americanos: o valor da vida simples e laboriosa do morador das cidades pequenas. A mensagem não dita era: "Você não precisa ser um cidadão da metrópole, rico e glamouroso para ser alguém. Você precisa é fazer bem o que vo­­cê faz e cuidar de sua comunidade." É a filosofia do formigueiro e ninguém pode dizer que ela não ajudou os Estados Unidos.

Capra tinha uma capacidade aguda de observar a sociedade à sua volta. Ele reflete em seus filmes a crença no homem comum e bom, que coloca a comunidade acima de interesses pessoais. Aquele homem bom americano se diferencia do homem bom brasileiro por ser generoso também com a comunidade, o que inclui estranhos. O brasileiro bom é aquele que faz tudo por sua família e amigos próximos. No nosso país sentimental, a ló­­gica é proteger os seus, mesmo que isso signifique avançar so­­bre o que seria direito dos outros. Virar uma onça quando alguém incomoda seu filho é lindo, mesmo que o seu filho é que seja o ca­­peta que incomoda os outros. Dar emprego para o namorado da neta é um gesto bem-intencionado, mesmo que isso tire a oportunidade de outra pessoa que precisa muito dela. Ninguém — tirando os Sarney e outras famílias privilegiadas — pode dizer que esta filosofia ajudou o Brasil.

O biólogo americano Stephen Jay Gould viu na história de Geor­­ge Bailey um tratado das contingências históricas, aquelas pe­­quenas circunstâncias que determinam o rumo de uma vida. Ele titulou um livro sobre a evolução de animais de Wonderful Life (Vida Maravilhosa, Companhia das Letras) em homenagem a Cla­­rence, George Bailey e Frank Ca­­pra e também à opabinia. A opabinia era um animal que parecia um tatu-bolinha com cinco olhos. Fósseis desse bicho feio foram encontrados no Canadá, em um local chamado de Burgess Shale. O livro de Gould fala sobre como circunstâncias histórias levaram ao desaparecimento da espécie. São as tais contingências que ele viu na vida de George Bailey, que acabou sendo o que não queria ser: morador de uma cidade pequena, trabalhando em um escritório, sem dinheiro para viajar. George é salvo do desespero por sua coerência. Fez o que achava certo e o que achava certo não era só o que era melhor para ele. Influenciou o mundo e foi influenciado; de certa forma, a conta fechou no final. Ele percebeu que sua vida foi rica e escapou do suicídio. E Clarence ganhou suas asas.

Marleth Silva é jornalista.

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