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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Quando voltei à casa onde tinha vivido na infância, só pude caminhar pelo quintal. A casa, então habitada por outra família, estava trancada. Provavelmente pulei algum muro para chegar lá – não lembro ao certo; o retorno aconteceu na minha adolescência. Lá da rua o lugar parecia normal, mas, quando entrei, percebi um estranho fenômeno. Tudo havia encolhido. As escadas, que eram muitas porque o terreno é em declive, não eram mais compridas ou largas como eu recordava. O gramado não era mais a pradaria onde, aos 8 anos, galopei cavalos imaginários. Como foi possível correr tanto naquele pátio pequenino? Onde, se o espaço era tão reduzido? Foi meu primeiro susto com o encolhimento do mundo. Eu não era Alice, não havia bebido da garrafa com o rótulo “beba-me”, e mesmo assim havia entrado em um mundo reduzido.

E assim segue a vida. Quanto mais piso em novos lugares, menores ficam aqueles endereços da infância quando retorno a eles. A única exceção que me ocorre são as salas de aula das escolas públicas. Estas eram grandes, de pé-direito muito alto, e continuam assim quando as revejo.

O quintal da infância foi um universo, um mundo íntimo onde imaginei outros tantos mundos. Sentada no muro, olhava na direção do campo. A cidade era pequena e da rua central, onde ficava a nossa casa, dava para ver a rodovia cruzando lavouras. Brincava em uma das escadas, que eram transformadas pela minha imaginação em aviões, escritórios, casinhas. Sentada naqueles degraus, alimentei maridos e filhos imaginários. A galope naquele muro, elaborei estratégias para derrotar o exército que se aproximava.

O quintal da infância foi um universo, um mundo íntimo onde imaginei outros tantos mundos

Miroslau, o gato preto e briguento, aparecia na porta da cozinha. Tinha também um apelido, Miro. Cada dia surgia mais arrebentado. Um dia apareceu sem uma orelha. Noutro, sem um olho. Estava sempre machucado. Eu via Miro como um felino grande e encorpado, uma fera negra. Vai ver era um bichaninho mirrado, cujo tamanho era inflado pela minha pequenez de criança ou pela intimidade que havia entre nós. Tiro essa explicação do poema do Manoel de Barros: “A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas”. Miro era parte do meu mundo íntimo, assim como o quintal. Eram gigantes para mim porque não tinham apenas o tamanho físico; eu atribuía a eles outra dimensão, que espelhava minha imaginação, minha curiosidade e até minha empatia. Gato e quintal cresciam com a dimensão que não era só deles, era minha também.

“Acho que o quintal onde a gente brincou é maior que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande.” É Manoel de Barros novamente. Sobre o lugar onde vivo hoje, acredito que conheço o tamanho real. Meço tudo em metros quadrados devidamente cotados pelo valor de mercado. Há intimidade ainda, mas não espaço para a imaginação transbordante e descontrolada que me distraía em cima do muro, de onde eu caía de tempos em tempos. Suponho, então, que não viverei mais a magia do encolhimento-crescimento.

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