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Desconfio que qualquer criança de classe média hoje tem mais brinquedos que um herdeiro milionário de 40 anos atrás. Que qualquer um de nós acumula mais objetos eletrônicos em nossas gavetas do que nossos pais teriam durante a vida toda. Que um adolescente de nossos dias ingere mais calorias em um fim de semana do que um jovem comilão ingeria em uma semana, no Brasil de 50 anos atrás. Porque de malnutridos pulamos diretamente para a obesidade. É a era da abundância na qual quem tem tem muito. Por isso, desfazer-se de guardados se tornou imperativo se não quisermos afundar na papelada, nos cabos de aparelhos que nem lembramos mais que temos, nos livros, CDs e até LPs que guardam tanta coisa boa, mas que não servem para nada quando empilhados juntando poeira. Pior, como há tanto de tudo, não basta anunciar na mesa do bar: "Tenho lá em casa uns livros pra botar fora; quem quiser ficar com eles que erga a mão". Periga não aparecerem interessados. Não é só para você que falta espaço nos armários e gavetas.

Não estou dizendo que ficamos todos ricos. Quem dera. No Brasil quase ninguém tem poupança, a maioria depende do rendimento mensal e consome tudo o que ganha. O que significa que se pode ficar em apuros de uma hora para outra – e aí o que está acumulado em casa não vai ajudar em nada.

Desfazer-se de objetos é uma necessidade e até uma fonte de prazer. Um prazer que vem em partes. No primeiro momento, encontra-se pequenos tesouros esquecidos: aquela foto deliciosa da viagem com os amigos, aquele livro que é realmente precioso e que será relido quem sabe quantas vezes (e que novas descobertas teremos em cada uma delas?), aquele papelzinho onde se anotou uma frase que parecia importante na época e que – surpresa! – agora se encaixa em uma situação que estamos vivendo. O segundo momento desse prazer é ganhar espaço, enxergar menos bagunça, encontrar tudo mais fácil porque não há mais camadas sobre camadas de objetos guardados e sem uso. E há o terceiro e grande prazer, que é descobrir que nada do que foi embora faz falta. Aprenda quem quiser aprender: não precisamos comprar tanto, nem guardar tanto, nem fotografar tanto. O excesso anestesia os sentidos.

Os objetos rejeitados seguem seu caminho. Os livros serão lidos por outros, as roupas irão a outros encontros, os móveis acomodarão outras famílias. Algumas coisas ficarão pelo caminho, inúteis e tristes. Para quem nasceu antes de o mundo virar digital, é chocante ver que este é quase sempre o destino do papel.

Fotografias, cartas e cartões, revistas, mapas, dicionários – a maioria "morre" após sair de nossas gavetas. Quem quer um mapa de papel, difícil de dobrar, que amassa e rasga, quando se pode consultar um aplicativo no celular? E, ainda assim, como são lindos os mapas de papel! Sempre nos farão pensar no mapa do tesouro, e se estamos querendo andar por aquelas ruas ou estradas é porque supomos que algo de valor há para ser encontrado. Que delícia apontar um trajeto com o indicador ("saio daqui, vou por aqui, viro ali..."), dobrar o papel, colocá-lo no bolso e sair um pouco temeroso, um pouco excitado, em busca da Rua Jujuy, em Buenos Aires, da Cheyne Walk, em Londres. Os mapas de papel são poéticas e antiquadas lembranças de outro tempo, que nem bem acabou e já parece distante. Para eles não haverá uma segunda vida nas mãos de novos donos.

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