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Comecei o texto pelo título e ele ficou muito pretensioso. Para falar a verdade, só estava buscando uma boa cachaça. Não precisava ser perfeita. Começou com a visita de um parente estrangeiro. Era a hora de oferecer uma cachacinha, que os que vêm de fora sempre mostram curiosidade pela aguardente. Não tinha em casa. No Mercado municipal, onde levei os parentes para passear, experimentei uma cachaça de um dourado bonito, produzida no Norte do Paraná. Mas não comprei porque... Dias depois, ouvi a moda de viola, aquela que diz “com a marvada pinga é que eu me atrapaio / eu entro na venda e já dou meu taio / pego no copo e dali num saio / ali memo eu bebo / ali memo eu caio.”

Foi assim que encasquetei com a ideia de comprar uma cachaça.

Fui atrás da pinga. Encontrei de tudo no mercado em que faço compras: da barata e da muito cara, da branca com aparência de álcool de limpar vidraças e da dourada e cremosa como um conhaque. O sabor? Não sei dizer. Se estivesse provando as cachaças que encontrei, voltaria para casa como a mulher da canção: “venho trupicando, chifrando os barranco, venho cambetiando. E no lugar que eu caio já fico roncando”.

A beleza das palavras, 4. Zeitgeist. Termo alemão que se refere ao clima cultural e intelectual de um período

Tem um café no Centro da cidade que enfeita suas paredes com garrafas da marvada pinga. Em uma tarde chuvosa, sentei ao lado da prateleira para sondar as branquinhas. Estavam lá a Famosinha e a Boazinha. E mais: Tentadora, Benvinda, Farrista, Conselheira, Iluminada, Severina do Popote, Mió du Brasil, Pau da Vida. Escolhi uma de nome discreto, Cristalbana. “Armazenada em tonéis de amburana”, me pareceu muito respeitável.

Os produtores se esforçam para melhorar o conceito da cachaça, mas ela é perseguida por essa reputação de aguardente barata e simples, que se bebe até cair. “Só pra carregar é que eu dô trabaio” – cantava a Inezita Barroso. É disso que fala a moda de viola, de alguém que bebe pinga até cair. E fala com bom humor. “Cada vez que eu caio / caio deferente / Meaço pá trás e caio pá frente / caio devagar, caio de repente / vô de corrupio, vô deretamente / Mas sendo de pinga, eu caio contente. Oi lá.”

Hoje em dia não se imagina um compositor fazendo uma canção tão jocosa sobre alguém que bebe pinga até cair. Alcoolismo foi reconhecido como doença perigosa em 1967. Mais de 30 anos, portanto, depois de dois músicos do interior de São Paulo terem composto Marvada Pinga. Inezita fez sua gravação nos anos 50. De um lado do disco, a moda de viola sobre a mulher que confessa: “trago um garrafão que venho chupando”. Do outro, a elegante Ronda, de Paulo Vanzolini. Tonico e Tinoco gravaram uma versão de Marvada Pinga mais hard-core: “Vou rolar na pueira / que nem tico-tico / vou de quatro pé destripando o bico / junta a mosquiteira / mas eu não implico.”

Provo a Cristalbana. Em seguida, com medo de me ver rolando na poeira das ruas com mosquitos voando por cima e, pior, de chifrar os barrancos aqui do Cascatinha, guardo a garrafa no fundo do armário, junto com os enfeites de Natal, onde ela esperará em segurança pelos próximos estrangeiros.

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A beleza das palavras, 4. Zeitgeist. Termo alemão que se refere ao clima cultural e intelectual de um período; o espírito do tempo.

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