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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

O assunto é o mal. Os três comentários vieram de fontes distintas, separadas no tempo e no espaço. A relação do ser humano com o mal é um mistério e é sobre ela que se discutiu de forma direta ou indireta.

Nos cinemas, Hannah Arendt pensa em voz alta e essa voz nos chega lá de 1961. No episódio mostrado no filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trota, a filósofa judia-alemã se oferece para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém. O que ela escreve depois provoca a fúria de muitos, inclusive de velhos amigos judeus. Mas o que nos interessa é a observação que a filósofa faz do nazista responsável pelo transporte dos judeus para os campos de extermínio. Eichmann não se julgava responsável por nada, nem culpado, porque cumpria ordens. Consciente das consequências de seus atos, ele levou milhões à morte. Não questionou, nem reagiu. Apenas fez o que lhe mandavam fazer. Estava convencido de que agiu certo. Foi por que ele odiava os judeus? Não. Porque abdicou do direito de pensar, conclui Hannah Arendt. Ele deixou que os líderes nazistas pensassem por ele. Com isso se autoeximia de culpa.

Diante da brutalidade que o mundo havia acabado de viver na Segunda Guerra Mundial, Hannah Arendt, que ingressou na Filosofia estudando o amor segundo Santo Agostinho, se põe a pensar sobre o mal. Depois do julgamento em Jerusalém, não abandonou mais o tema. O mal é tornar as pessoas obsoletas, diz ela a certa altura do filme. Obsoletas como os judeus, que podiam ser eliminados. Obsoletas como Eichmann, que não pensava e aceitava matar.

No livro 1889, lançado neste fim de semana, Laurentino Gomes conta como aconteceu o fim da monarquia brasileira e o nascimento da República. Lá e cá surge o tema da escravidão. No fim do século 19, a escravidão manchava a imagem do Brasil no exterior e mantinha o país preso a uma economia atrasada. A escravidão não é o tema do livro, nem ele traz considerações novas sobre ela, mas na descrição daquele Brasil em mutação fica claro que a escravidão era obsoleta. Pois os brasileiros não entenderam o que acontecia aqui. Para a maior parte da elite do país, os negros é que haviam se tornado obsoletos, não a escravidão. Libertados, eles não foram tratados como pessoas. Foram tratados como seres que só podiam ser escravos. Não foram exterminados em câmaras de gás, mas abandonados ao azar. Quase ninguém se deu conta do mal que estava sendo feito. É a banalidade do mal, diria Hannah Arendt.

Na conferência que proferiu em Curitiba no dia 16 de agosto, o escritor argentino Alberto Manguel falou sobre o paraíso. Em meio à busca de definições do que é o paraíso, ele surpreendeu (a mim, pelo menos) falando sobre o mal. É preciso ouvir os criminosos para entender o que os move, disse Manguel. Estamos errando em não ouvir os perpetradores do mal. Talvez Manguel pensasse em Hannah Arendt, que ouviu Adolf Eichmann e expôs esta dimensão do mal: ele se infiltra nos acomodados, nos obedientes, nos que não pensam. O mal não precisa de bons oradores, de grandes políticos, de gigantes dos negócios. Ele existe porque o ser humano aceita não pensar.

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