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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Foi um escândalo nos Estados Unidos: no livro Grito de Guerra da Mãe-Tigre, a professora de Direito Amy Chua, conta como educou suas duas filhas seguindo o que ela diz serem os princípios chineses de educação e em total desprezo pelo padrão norte-americano. Segundo o relato de Amy, o estilo chinês é severo e voltado para o sucesso escolar e profissional, enquanto o americano é liberal e permissivo e, no ponto de vista dela, não capacita os jovens americanos para trabalhar duro, nem desenvolve suficientemente as potencialidades. Para nos situarmos: levando em conta o que Amy diz, os pais brasileiros estão no mesmo grupo que os americanos. Mesmo os mais rígidos não chegam perto do padrão chinês.

Por que o escândalo a que me referi lá em cima? Porque Amy parece ser muito sincera e não esconde a verdadeira tortura a que submeteu as duas filhas (agora uma tem 15 anos e a outra, 18): além de só poderem tirar a nota máxima na escola, elas sempre foram obrigadas a exercícios extras em casa (Matemática, especialmente) e a praticar um instrumento musical (escolhido pela mãe) diariamente, por duas a três horas. O treino musical incluía fins de semana, feriados e viagens de férias. Em qualquer lugar aonde a família ia, a mãe procurava um hotel com piano para a mais velha e carregava o violino da mais nova. E a mãe-tigre também se submetia à tortura – enquanto as filhas estudavam, ela ficava ao lado, orientando.

Quando soube do livro antipatizei com Amy e questionei se ela não estava se precipitando. Pensei que ela só poderia avaliar o ganho ou os estragos de seu método quando as filhas se tornassem adultas. Mas ao terminar o livro, estava antipatizando menos com a mãe-tigre. Ela não esconde que suas atitudes colocaram uma das meninas contra ela (a mais nova), nem outros problemas que teve. A sinceridade dela baixou a minha guarda.

Arrisco uma explicação para a reação furiosa dos americanos. Ao comparar a educação familiar chinesa com a americana, Amy aponta o americano como displicente e fadado ao fracasso. Nas entrelinhas: quem está sendo preparado para dominar o mundo? Os jovens chineses. Diante da crescente importância econômica da China, dá para entender que o que poderia ser um simples relato materno sobre educação de crianças seja lido como uma advertência sobre a nova ordem mundial. Ainda mais que Amy não é uma dona de casa sem referências; é professora de uma universidade respeitada (Yale) e autora de livros que misturam economia com observação sociológica. Um deles se chama Dia do Império: Como as Superpotências Atingem a Dominação Global – e Por que Elas Caem (inédito no Brasil). De certa forma, ao falar do que se passa dentro de sua casa, ela está fazendo uma metáfora do que talvez acredite estar acontecendo no mundo: os americanos, amolecidos pelos anos de fartura e pela crença na psicologia, perdem a capacidade de dominar a economia e a política mundial, enquanto os chineses, durões e sem medo dos sentimentos, estão com tudo nas mãos para serem os novos senhores do planeta. A metáfora piora porque Amy é casada com um americano, que não consegue influenciar na educação das meninas, mesmo quando discorda dos métodos durões da esposa.

Há um elemento que acirra as posições de Amy. Ela é filha de imigrantes e filho de imigrantes tendem a ser pessoas que sentem nos ombros o peso da responsabilidade herdada porque viram os pais se esforçarem muito. Filhos de imigrantes têm uma construção emocional única em relação ao local onde vivem: Amy é americana, mas sente que também é muito chinesa. Cresceu comendo outros pratos e falando outra língua mesmo vivendo em solo americano. Sentiu-se, portanto, deslocada. Esse deslocamento vai acompanhá-la para sempre. Ao mesmo tempo, o filho de imigrantes sente que precisa preservar um pouco da herança dos pais. Ele não quer se adaptar 100%. Tornar-se 100% americana seria uma traição para com seus pais.

Métodos bizarros e questões geopolíticas à parte, o relato de Amy aborda com sinceridade questões difíceis em qualquer lugar do mundo. Os pais impõem o que acham certo porque acreditam que estão fazendo o melhor para os filhos – há limites para essa imposição? No fundo, os pais não agem sempre pensando em si próprios? Alguém faz esta pergunta a Amy. Ela diz que de certa forma é isso mesmo e que na cultura chinesa pais e filhos são um só.

O relacionamento entre pais e filhos é o império das boas intenções e dos grandes desencontros. Se não fosse pelo amor, que cola os caquinhos, nunca sobraria nada dessa guerra entre grandes potências.

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